
O filme A COR PÚRPURA (154’), direção de Steven Spielberg, EUA (1985), é baseado no belo e pungente livro homônimo de Alice Walker, publicado em 1982, que daria a ela o Prêmio Pulitzer no ano seguinte. Este livro surgiu das vísceras do mundo agrário no interior negro do sul dos Estados Unidos, portanto, surgiu lá dos confins de uma África que teve seus filhos exportados para a escravidão nas Américas. Se é um hino à amizade e ao amor, é antes de tudo um hino à vida, que implica não só em denunciar as barbáries do patriarcado e do racismo, mas também em entender como se constituem as relações humanas, e seus reflexos nas relações sociais. Os rancores que ficam podem ser compreendidos sob um ponto de vista diferente, principalmente quando se reconhecem as fraquezas e os disparates que se cometem em nome de algo que com o tempo perde o sentido. Se perde o sentido, não apagará as consequências, mas pode-se conviver com elas, afinal, não precisamos deixar que os sofrimentos do passado atrapalhem o nosso viver. Podemos substituí-los por coisas belas e produtivas, por sorrisos e delicadezas. Nada mais saudável que o cotidiano para aplainar as dores e retroalimentar as esperanças. Este é o hino cantado em cada página do livro de Alice Walker, e é esta mesma esperança que Steven Spielberg leva para a tela, conservando a grandeza humana que permeia os fatos a serem repudiados. O feliz roteiro de Menno Meyjes, que respeita o livro, inclusive utilizando-se dos diálogos de Alice Walker, vem preservar o grito original da obra literária, o de que a vida, a despeito de tudo, tem que continuar.
Antes de analisarmos o filme, cabe falar um pouco de Alice Walker para entender como surgiu esta obra prima da literatura norte-americana, transformada em belíssimo filme. Menina feliz e extrovertida, nascida no interior da Geórgia — o coração negro do sul dos Estados Unidos —, Alice acaba sofrendo na infância um grave acidente quando, brincando com os irmãos, perde a visão do olho direito. Este fato marcaria sua vida. Mais introspectiva, volta-se inteiramente para a leitura e a escrita. Ativista, ao trazer para dentro da sua literatura as dores do racismo, ela não endeusa os negros em nome de uma causa superior — as lutas pela igualdade racial. No embate com o branco, o que se discute são os cotidianos das famílias negras, e o que vamos ver são manifestações de poder, de abusos, de amores mal resolvidos, amizades duradouras, enfim, a santidade dos palcos das lutas por igualdade de direitos não será a mesma santidade entre quatro paredes. Esta abordagem honesta, trazida inteira para o filme, dá credibilidade humana e filosófica à narrativa.
O filme já começa impactando com a cor púrpura envolvendo as duas irmãs, Celie e Nettie, que, num caminhar afogueado de dança e felicidade, compõem a paisagem de um mundo idílico, do qual jamais se separarão. Assim diz a letra da brincadeira:“Makidada, nada vai afastar minha irmã de mim. Makidada, eu e você nunca vamos nos separar”. Na ação seguinte, na mesma paisagem, mas sem a cor púrpura, vem a dor machucada de Celie na gravidez do abuso. O idílio já não é mais o mesmo, mas a obsessão de nunca se separarem está ainda mais viva. Sabem que precisam estar juntas para enfrentarem o mundo. Leia-se, machismo, abuso, racismo, ignorância.
Celie e Nettie são duas irmãs que perdem o pai ainda pequenas e vão morar na casa do padrasto, de quem sofrerão ameaças psicológicas, e Celie, abusos sexuais. Muito pequenas, crescem apegadas uma a outra, com juras de nunca se separarem. São estas juras a fortaleza de um amor que nunca se renderá ao esquecimento e à distância. Esta é a poesia que embeleza a obra.
Celie (Desreta Jackson, menina), após gerar duas crianças por conta dos abusos de quem ela considerava ser seu pai, casa-se com Sinhô Albert (Danny Glover, perfeito), viúvo que precisava de uma mãe e de uma doméstica (mais doméstica que mãe) para cuidar de sua casa e prole. Logo se revela também um homem cruel, insensível aos sentimentos de Celie, fazendo dela uma mera propriedade, a quem pode espancar sob o menor pretexto, muita das vezes, inexistente. Ao receber como hóspede Nettie (Akosua Busia, expressiva), que fugira dos assédios do pai, Albert vai replicar os mesmos comportamentos abusivos, levando, com a desesperada fuga de Nettie, à separação das duas irmãs.
Está montado o arco narrativo que vai explorar com muita sensibilidade e força dramática a história de Celie, cujo relato percorrerá praticamente a primeira metade do século XX. São histórias que se pulverizam em inúmeras personagens que vão nascendo e crescendo junto com a narrativa, tendo sempre como força motriz a obsessiva esperança de Celie de um dia receber uma carta com notícias da irmã. Ao se separarem, esta foi a promessa, a de que manteriam contato por cartas. E eis a principal maldade do Sinhô Albert, e que se constituirá no fel criativo da trama. Por vingança — foi rejeitado por Nettie —, Albert recolhe e esconde todas as cartas enviadas por Nettie ao longo de trinta anos! Será a dor da saudade que moverá Celie para a vida.
Na obra literária, a história de Celie é contada em forma de cartas que ela escreve para Deus. “Querido Deus”, é assim que ela inicia as cartas. Deus é o único ser, mesmo que ausente, com quem Celie pode conversar e ressignificar seus sofrimentos. É em cima desta singela estrutura epistolar que a narrativa se conduz nas suas dolorosas verdades. O filme mantém esta estrutura, habilmente aproveitando a voz de Celie como narradora onipresente. Esta opção dará ritmo e pulsão às imagens que vão se desenrolando diante de nós.
A questão racial não é pano de fundo em A Cor Púrpura. Lateja em cada cena, em cada diálogo. Mas o que salta aos olhos é a narrativa da condição da mulher negra naquela sociedade rural. Traz a síntese do heroismo feminino. A menina que nasce em meio a homens veio ao mundo para sofrer, eis a questão básica desta incansável discussão da vulnerabilidade da mulher diante do machismo abusivo. Sofia, a corajosa nora de Albert, vai à luta o tempo todo. E sua grande decepção foi, depois de ter lutado contra pai, tios e irmãos, ter agora que lutar contra o marido. Prefere abandoná-lo.
O contraponto das belíssimas construções do feminino negro nas figuras de Celie, Shug Avery e Sofia surge da histriônica figura da mulher branca do prefeito, Millie (Dana Ivery). Ela parafraseia a insensibilidade sociorracial na poderosa sequencia de cenas, talvez uma das manifestações mais cínicas que já se viu no cinema, em que Sofia ensina a patroa a dirigir. A fragilidade do branco diante de sua obra macabra (o racismo) extrapola qualquer possibilidade de deleite e riso por parte do espectador. Antes, é motivo de espanto.
Steven Spielberg, à época em que foi indicado para dirigir o filme, era visto como um diretor talentoso e promissor, mas que havia feito apenas filmes infanto-juvenis de grandes sucessos. A Cor Púrpura seria sua primeira direção de drama e o resultado era esperado com grande expectativa e alguma desconfiança. Diretor branco, jovem em processo de amadurecimento, temáticas espinhosas, qual seria o resultado? Qual seria o mergulho? Quando do lançamento, houve reticências quanto a seu trabalho, tanto que o filme foi indicado a onze estatuetas, nenhuma delas a de Melhor Diretor. Será que um diretor mais experiente em dramas, de preferência negro, traria uma pegada mais forte e fidedigna às realidades trazidas pelo livro? Como saber. Mas não se pode negar que A Cor Púrpura de Steven Spielberg demonstra qualidades que o fazem sobreviver ao tempo. E hoje fica difícil entender (ou não) por que o filme não levou, em 1986, sequer uma estatueta! Das onze indicações!
Em suma. O filme, amparado por maravilhosa obra literária, é um cântico de esperança em meio às trágicas vivências de pessoas esquecidas nos becos dos rincões sociais, onde vivem condenadas por preconceitos e por atitudes bárbaras de sociedades que negam reconhecê-las. Preferem, em vez, matá-las. Sem mágoas, sem revanchismos, as questões do feminino, do machismo e do racismo são trazidas como um elegante grito de revolta a situações de desespero em que estão mergulhadas mulheres negras, homens negros, filhos negros. Nas figuras estonteantes das atrizes Whoopi Goldberg (Celie), Margaret Avery (Shug Avery) e Oprah Winfrey (Sofia), o feminino é elevado à sua grandeza máxima, como condutoras que são de realidades com as quais elas têm que lutar o tempo todo, e o fazem sem o menor vacilo. Mesmo a subjugada Celie, vai ela aos poucos sendo conduzida para sua consciência de ser humano mulher, negra, feia e pobre, fazendo destes “atributos defeituosos” suas armas de viver. E é tão forte, tudo, que a força humana do livro se sobrepõe à narrativa cinematográfica. É o cinema se debruçando humildemente diante de temáticas que ele apenas tenta reproduzir, jamais superá-las.