A Lista De Schindler

Um filme de arrepiar!

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A LISTA DE SCHINDLER (197’), direção de Steven Spielberg, EUA (1993), ganhador de sete Oscar, sete Bafta e três Globos de Ouro, é um daqueles filmes que são produzidos para colocar a história no seu devido lugar. Por isso não poupa os horrores, não poupa realismo. O que vamos ver na tela é uma réplica terrível de fatos que assombram a história do holocausto. E para dar certificado à verdade, vamos ver no final do filme a singela cerimônia dos idosos sobreviventes — eis o belo toque documental — salvos pela corajosa intervenção do empresário alemão Oskar Schindler. É por causa dele que os mil e cem sobreviventes são também conhecidos como os judeus Schindler. Portanto, estamos diante de reais fatos históricos. O filme acaba sendo uma homenagem justa a este homem cuja coragem trouxe alívio para muitos em meio aos sofrimentos causados pela guerra e pela perseguição aos judeus. Como tantas outras histórias de generosidade, esta também tem a marca do heroísmo.

Oskar Schindler, nascido em 1908, no que conhecemos hoje como República Checa, deixa a mulher no interior e vai para a Cracóvia tentar se fazer na vida. Homem de traços finos, gostos requintados, elegância meticulosa, colecionador de amantes, de grandes festas e farta bebida, este ser profano tinha um único objetivo: ficar rico. E espertamente logo percebe que a guerra, e em particular a perseguição aos judeus, poderia lhe trazer enormes vantagens. Em 1939, com a ajuda de judeus ricos, compra uma fábrica de esmaltados falida. Alemão, nazista, articulado, inescrupuloso, ele consegue, com subornos, corromper as altas patentes do Reich, transformando-se num dos homens mais ricos e influentes da Polônia. Este é o início da trajetória de um homem ambicioso, que de bem-intencionado não tinha nada, pelo contrário, com movimentos claramente egoístas aproveitou-se dos pobres judeus como mão de obra barata para atingir seus objetivos. Aliás, muitos industriais à época aproveitaram-se de mão de obra gratuita para, sob o disfarce do esforço de guerra, alavancar seus negócios. Neste panorama, o que Oskar Schindler tinha de diferente era que ele tratava bem, com urbanidade, os seus empregados. Por trás de uma alma cheia de vícios, existia o humano pronto para seguir caminhos inesperados.

Ao relatar a trajetória da personagem Oskar Schindler (Liam Neeson, fenomenal), A Lista de Schindler monta um vigoroso painel das perseguições aos judeus na Cracóvia, desde a invasão da Polônia, em setembro de 1939, até a derrocada do regime nazista, em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira parte do filme se ocupa em esboçar a figura de Oskar Schindler, com suas manobras duvidosas para adquirir a fábrica e aparelhá-la com mão de obra judia. A partir do instante em que o gueto é desocupado (1943), e todos os judeus — inclusive os empregados de Schindler — encaminhados para o campo de concentração, inicia-se aqui, com cruel acabamento de cenas, toda uma sucessão de horrores que irá representar a história dos milhões de judeus mortos nos campos de concentração alemães.

Para sedimentar a estrutura da maldade, surge a personagem do mal no comandante do campo de concentração, Amon Goeth (Ralph Fiennes). Ele vai nos proporcionar uma bateria de cenas horripilantes, em detalhes clamorosos — comporta-se como um imperador romano —, com especial atenção para a cena que acontece no minuto 75 do filme, uma das piores a que se pode assistir em qualquer produção sobre o holocausto. É o auge da barbárie, é a anulação do ser humano provido de racionalidade, é a cena em que Amon, da sacada da sua casa, faz tiro ao alvo em seres humanos, quer dizer, em judeus. Depois de matar alguns “ratos”, deposita o fuzil e vai urinar.

A parte mais emblemática da longa narrativa é quando Oskar Schindler passa a conviver com o sanguinário Amon Goeth, afinal, a fábrica também teve que ser transferida para dentro do campo de concentração. Na base desta convivência “amistosa” está o suborno. Na visão dos oficiais alemães, Schindler sabia o que era gratidão. Não era uma ideia vaga, dinheiro é concreto e aparece com facilidade sobre as mesas dos que decidem. E Oskar Schindler sempre fica agradecido quando seus interesses são atendidos. E os oficiais ficam ainda mais agradecidos com os agradecimentos… É esta dinâmica de corrupções que vai possibilitar a Schindler executar seu plano de salvar mil e cem judeus. Cada vida terá seu preço.

Do tripé de personagens que move a narrativa, falta falar do hábil contador que comandará a fábrica de panelas, o judeu Itzhak Stern (Ben Kingsley, perfeito). Como ótimo farejador de oportunidades, Oskar Schindler encontra em Stern seu ponto de equilíbrio e sua garantia de sucesso comercial. E será Stern quem o ajudará na execução do plano de libertação dos judeus. A conversa de apresentação entre os dois define como será a relação entre eles. Diz Itzhak. “Por lei, tenho que avisar que sou judeu.” No que Oskar responde. “E eu sou alemão. Assunto encerrado.”

Itzhak Stern, homem simples, objetivo e cauteloso, é quem irá estimular o lado “bom” de Oskar Schindler. Até certo momento do filme, a dicotomia entre bom e mau em Schindler será uma convivência constante, pouco conflituosa. Mas a construção do arco da personagem em direção à sua transformação para o bem se dará ainda no começo do filme, quando Itzhak introduz o senhor idoso e maneta que vem agradecer a Schindler pelo emprego na fábrica. Quem lhe dera o emprego foi o próprio Itzhak. Schindler reage à presença do homem e censura Itzhak pela sua ação humanitária. Esta cena não estava no cardápio comercial de Schindler. Mas é ela que vai acender em Oskar a primeira chama da bondade.

(No minuto 125 do filme é quando se dá a transformação definitiva em direção acelerada ao homem “bom”. É quando Schindler, compadecido, pega a mangueira e banha os judeus empilhados nos sufocantes vagões do trem.) 

Vale ressaltar uma das características mais bem construídas da personalidade de Oskar Schindler. Ele reage à ideia de ser uma pessoa bondosa (diferente de Amon, que não reage à ideia de ser mal). Para Schindler, a bondade não está na base da construção da sua fortuna. A todo pedido que pressupõe o ato de ser bondoso, ele reage. Às vezes, com fria agressividade. É como se batessem à porta, ele abre, vê quem é, bate a porta na cara, para logo em seguida abri-la e convidar a pessoa para entrar. Esta dinâmica constitui o fundamento da personagem Schindler, que possibilitará encaminhar o seu arco para a ação máxima do filme, a de salvar os mil e cem judeus.

Ainda analisando os movimentos de Schindler, percebemos que sua forma de reagir à bondade é pender perigosamente para o mal. Chega a defender o humanismo em Amon! Na guerra, diz ele, mostramos nosso lado ruim. Mas se estivesse tudo normal, também Amon seria uma pessoa boa! Veja a perversa dialética construída para justificar o injustificável. Inclusive para si mesmo, pois Schindler não era tolo o suficiente para não conseguir separar a maldade de suas circunstâncias. Neste caso, o mesmo pé que pisa o tapete vermelho é o pé que depois pisará a lama. Mudam as circunstâncias, mas o pé é o mesmo.

Cabe mencionar de passagem a famosa cena da menina de vermelho caminhando pela rua do gueto, e lá em cima Oskar Schindler, a cavalo, observando os trágicos acontecimentos. Este vermelho inocente em meio às barbáries em preto e branco — escolha estética decisiva — pode nos trazer várias simbologias. Deixamos aqui apenas uma. A significação do momento em que Schindler de fato toma consciência dos horrores em que ele próprio está envolvido.

 Em suma. As terríveis situações de guerra e a implacável perseguição aos judeus é que vão construindo a alma virgem de Oskar Schindler. Vem do interior para a cidade grande com o sonho de encher duas malas de dinheiro. Enche mais que isso. Crava seu nome na história. E quem burila sua alma é o silencioso contador que, serenamente, vai alimentando em Schindler o fogo humano da infinita compaixão. Temos, e é nosso desafio, que olhar com muita atenção (e espanto) para o que o filme nos mostra. Pode parecer ficção, imaginação de roteirista e idiossincrasias de diretor. E são. Só que a realidade transcende as veleidades ficcionais e vai bater à nossa porta, impiedosamente. O que está ali na tela não aconteceu exatamente daquele jeito. Nem podia. Aconteceu pior! Posto que a arte, por mais pura, jamais alcança a realidade.

 

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