No Limiar Da Vida

A maternidade é um dever da mulher

 “Ellius espera que sua esposa cumpra com o seu dever”. Quem poderia ser o autor desta sentença? Ora, o próprio, o Ellius! Que dever? A maternidade. É contra este milenar dever, ao qual ela parece estar condenada, que a mulher tenta se rebelar. E se reconstruir. O desejo de se ter filho é um impulso natural, torná-lo obrigação gerará subprodutos perigosos. A maternidade não pode ser uma mercadoria social. Pois é disto que trata o tocante filme de Ingmar Bergman, NO LIMIAR DA VIDA (80’), Suécia (1958). É a mulher colocada diante dos dilemas da maternidade.

O filme retrata o drama de três mulheres internadas numa enfermaria de uma maternidade, onde cada uma delas terá a oportunidade de apresentar sua relação com a gravidez. Os dramas se entrelaçam dentro do mesmo quarto, numa rotina aparentemente tranquila, enquanto histórias de vida díspares vão desenhando o desfecho para a mesma pergunta: ser ou não ser mãe? Há aquela que quer ser mãe, mas perde o bebê. Há aquela que não quer ser, e também perde o bebê. E há aquela que não quer o bebê e não o perde. Este é o jogo de xadrez que Bergman, por oitenta minutos, tenta jogar com o espectador. No perde e ganha, sobra a sensação de que a maternidade é uma batalha sem fim pela vida.

Para que possamos entender o drama de ser mãe sob a perspectiva do filme, vamos analisar a maternidade pelo lado do homem, o pai. Assim, nos parece, as coisas ficarão mais claras e menos confusas. Não que a maternidade seja algo confuso, não. É apenas uma proposta de ver a mesma questão pelo ângulo oposto. Afinal, maternidade e paternidade são faces da mesma responsabilidade por um ser que está vindo. Sim, ele está vindo. Daqui nove meses. E esta é a questão.

Vamos começar pelo tal Ellius, o que representou a fala acima, a de que dar filhos, de preferência machos, ao marido é um dever da mulher. Mas, e se o marido não fizer lá muita questão de ter o filho? É o que acontece com o professor Ellius (Erland Josephson), que, ao ser perguntado pela aflita esposa sangrando numa maca, prestes a abortar, se ele queria de fato o bebê, o esposo Ellius desvia a conversa para o banal, portanto, se cala. Está dada a senha para o aborto.

Neste diapasão, a maternidade de Cecília Ellius passa pela paternidade de Anders Ellius. Este é o fluxo emocional estabelecido na relação umbilical com o feto. Não havendo paternidade, não há maternidade. E por que o esposo não quer ser pai de um filho gerado pela esposa? Porque o esposo não ama a esposa, e o casamento apenas se mantém sobre as bases da conveniência. Cecília, desejosa do filho que acaba de abortar, se culpa por ter sido fraca, por não ter tido a coragem de assumir o filho, independente da sua relação com o marido. Mas a questão já estava estabelecida. Ela só conseguiria amar o filho através do pai. Se o pai não ama a mãe, a mãe então não será capaz de amar o filho. Neste caso, Cecília, sentindo-se incapaz de amar diretamente o filho, sem passar pelo marido, preferiu eliminá-lo.

Agora, o segundo esposo, Harry Andersson (Max Von Sydow), o homem da segunda grávida, Stina Andersson (Eva Dahlbeck). Amantíssimo! Apaixonado. Cheira as roupinhas do bebê que está por chegar. Planeja tudo, enquanto a esposa está aguardando o parto de um bebê que parece não querer nascer. Mas o Harry, o pai, anseia profundamente pelo filho, homem também, e também Harry, lógico! E Stina sabe que tem que cumprir com o seu dever.

Stina Andersson mostra traços da mulher moderna, preocupada consigo, com sua beleza, com seu corpo deformado que voltará a ser magro, com seu dia a dia longe das obrigações da maternidade. Ora, ela ama o bebê que está por nascer, mas… O problema é que o amor de Stina pelo marido Harry nos parece ser muito menor do que o amor de Harry por ela e pelo bebê. Para Stina, portanto, deixar o bebê nascer é enfrentar a realidade. E o bebê nasce. Com intervenção médica. E morre no parto. Stina está, enfim, livre!

Agora o último homem, sem laços de casamento, sequer de noivado, no máximo um namoro casual, em que a moça Hjõrdis Petersson (Bibi Andersson), ainda um tanto infantil, solta no mundo, longe da família, engravida do rapaz. Rapaz que nem no filme aparece! Desamparada, ela quer o aborto, lógico. Pressionada pelo pai, ressalte-se. Que não quer assumir nada, convenhamos. O que resta então para a inexperiente mamãe Hjõrdis é tomar quinina. E saltar corda horas a fio para ver se o embrião desce. Mas o bebê, herói da resistência pela vida indesejada, a tudo resiste!

Hjõrdis, que traz para a vida uma infância de abuso e solidão, sonha com um homem que a ame e que com ela se case. Mas o que a vida lhe oferece é apenas Tage Lindin, um passatempo. Ela está confusa. Oscila entre o querer, que é o verdadeiro, e o não querer, que é assustador. Por fim, curada dos sangramentos, vai receber alta do hospital. Diante de um Estado (sueco) que oferece todo apoio à maternidade, antes, durante e depois, e com o acolhimento familiar, cujos julgamentos a amedrontava, Hjõrdis decide que ama e quer o bebê. E o terá. Sem casamento!

Ficam, assim, apresentados ao espectador os dramas da maternidade que, sabemos, não terão fim. E por esta razão, em se tratando de maternidade, é perigoso determinar verdades. Portanto, faça você, caro espectador, seu quebra-cabeças, quem quer, quem não deseja, quem ganha, quem perde. Afinal, a maternidade, como qualquer outra instância humana, é bombardeada por uma infinidade de emoções e sentimentos sobre os quais não se tem controle, mas cujos efeitos desenharão a ecografia de um futuro ser humano. Se ele sobreviver, claro.

 

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