
O filme PASTORAL AMERICANA (126’), EUA (2016), saiu de uma obra literária exuberante, de mesmo título, escrita pelo consagrado autor estadunidense Philip Roth, e publicada em 1997. No ano seguinte, ele levaria o prêmio Pulitzer por este romance. A direção do filme fica por conta de Ewan McGregor, que também protagoniza Seymor Levov, a personagem dissecada como o símbolo de uma América que oferece o sonho de riqueza para todos, indistintamente. Seymor chega ao ápice do sucesso, pessoal e empresarial, como o representante deste ideário norte-americano. Só que Philip Roth prefere colocar sua personagem no ponto de tensão máximo, no limite da exaustão — a tumultuada década de 1960. É quando a sociedade norte-americana começa a questionar valores que se assentavam sobre a idealização da família perfeita que ajuda a construir a riqueza da nação. Os tempos agora são outros. Para a política, para a velha moral, para o capitalismo ainda mais selvagem, em que outros agentes, principalmente os países asiáticos, passam a abocanhar parte desta riqueza, derramando seus produtos baratos em mercados antes privativos dos Estados Unidos. Pastoral Americana é uma ironia que se espalha pela vida de Seymor Levov como um veneno a ser sorvido lentamente, até levá-lo à destruição. Imigrante judeu da terceira geração, recebido de braços abertos por esta América generosa em oferecer oportunidades, vê agora, através de sua filha Merry, a quarta geração, serem pulverizadas as suas crenças nacionalistas, sobre as quais construiu seus sonhos. O filme de Ewan McGregor luta desesperadamente para acompanhar as quase quinhentas páginas do romance, e se não o faz a passos firmes e seguros, cabe-lhe o mérito de levar para a tela uma narrativa instigante, necessária para compreender como tudo o que se idealiza será entregue à implacável voracidade da História.
O filme começa com a quadragésima quinta reunião dos antigos alunos da escola secundária de Newark, Nova Jersey. O livro, assim como o filme, apresenta o narrador como testemunha de parte dos fatos a serem narrados. No entanto, este narrador — escritor por profissão — desconhece o núcleo da trama, e se utiliza do amigo de classe, Jerry Levov (Rupert Evans), presente à reunião, e irmão mais novo do protagonista, para se pôr a par dos acontecimentos. O Sueco (apelido de Seymor) acaba de morrer e o famoso escritor, Nathan Zuckerman (David Strathairn), tem interesse em dissecar a história do seu ídolo esportivo de infância.
O grande Sueco, o jovem atleta que dominou vários esportes estudantis na Nova Jersey, cuja fama poderia levá-lo aos campos do esporte profissional, preferiu renunciar a esta natural trajetória para se dedicar aos negócios da família, a fábrica de luvas, em franca expansão, criada pelo pai. Afinal, produzir riqueza é o que exige a América! Revela ser um ótimo empresário, o que faz do Sueco a imagem perfeita vendida pela iconoclastia do sonho do sucesso garantido em terras ianques. Só que este modelo — do sonho realizável — chega a seu esgotamento.
O roteirista é bastante fiel às passagens que geram ação e aos diálogos narrativos da obra literária. Aliás, dentro do seu estilo vibrante e caracterizado pela simplicidade das frases curtas e rítmicas, Philip Roth também se destaca nos diálogos, uma qualidade rara para romances, cuja diluição dramática sempre dificulta o diálogo tenso, de caráter teatral. Diria que sua estrutura narrativa, em que despreza a cronologia em favor da demonstração de realidades que são paralelas e ao mesmo tempo imprescindíveis à compreensão psicológica das personagens, incita no leitor a curiosidade (e a paciência) de chegar logo ao final do livro para ter diante de si o painel completo da trama. Numa feliz opção, o filme escolheu a linearidade, fugindo à diluída complexidade da trama, portanto, de riscos desnecessários.
Ao optar pela linearidade, podemos observar o malabarismo do roteirista em pinçar cada fato dentro do romance de quase 500 páginas e ordená-los numa sequência dramática que coopte o interesse do espectador e o insira — apesar dos limites — nas problemáticas trazidas por Philip Roth. Para ficar em um exemplo, tomemos uma das cenas iniciais do filme, em que assistimos ao jovem apaixonado judeu Seymor Levov levar a namorada irlandesa católica Dawn (Jennifer Connelly) para ver o pai Lou Levov (Peter Riegert), e dele obter o consentimento do namoro e futuro casamento. Esta cena, básica para a compreensão de muitos dos conflitos que permeiam o filme, corresponde, no romance (Cia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo), a uma das últimas cenas, cujo ponto máximo é o vibrante diálogo entre Lou Levov e Dawn, entre as páginas 442 e 452. Coube ao roteirista John Romano percorrer a trama labiríntica para compor sua narrativa simples e cativante.
Portanto, como estratégia de síntese narrativa, o filme se prende tão somente ao núcleo dramático do romance — o dilema familiar de Seymor Levov —, passando ao largo das intenções sociopolíticas de Philip Roth, cuja ficção é apenas um pretexto para ele discutir, com total habilidade e conhecimento dos fatos históricos, temas que lhe são caros. Desnuda o engodo capitalista americano, quando se sabe que esta mesma América cobra até a última gota de sangue dos que acreditaram num sonho que para a maioria será inalcançável. Em troca da desilusão, é oferecido aos desiludidos um bom salário, desde que se escravizem numa linha de produção alucinante.
A contestadora filha, acometida de gagueira, Merry Seymor (Dakota Fanning), criação espetacular da falha genealógica familiar, será a agente desta ruptura, quando embarca em atos terroristas e explode a mercearia (com morte) do pacato lugar onde moravam. A explosão, gestada dentro da casa dos Levov, é o doloroso ponto da triste realidade que se anuncia. Numa década de intensos movimentos sociais, de lutas por direitos civis dos negros, o segregacionismo, os assassinatos políticos (John F. Kennedy, Martin Luther King, Robert Kennedy), e a desastrosa Guerra do Vietnã vêm colocar a nu a mentira do sonho alcançável. E o Sueco, o protagonista, acompanha, indefeso, esta trajetória de horrores que desembocará na decomposição familiar. É o anúncio do fim de uma era.
A cena fatídica, que prenuncia a desconstrução do ideal de família feliz, está na fala da senhora Penny Hamlin (Samantha Mathis), quando Seymor e Dawn vão visitá-la para oferecer as condolências pela morte do marido, provocada pela bomba colocada na mercearia da família pela adorada filha do casal, Merry Levov. A fala da Sra. Hamlin expõe a lógica titubeante do conceito moralista de felicidade e infelicidade. Ela não julga o casal cuja filha aparentemente desfez sua família. Não! A família dela não foi desfeita, porque ela e os filhos, a despeito da morte do pai, continuam intactos e perpetuarão a luta pelo ideal de felicidade, diferente da outra família, a dos Levov, a despeito de todos continuarem vivos, algo foi destruído pela ação malévola da filha. Para a Sra. Hamlin, os Levov estão condenados à infelicidade.
O que move Seymor é o componente culpa. A eterna culpa que surge quando os pais se deparam com os desvios morais do filho. É a velha pergunta. O que é que eu fiz de errado? A busca pelo erro é um dos movimentos essenciais do protagonista, infelizmente minimizado pelo filme, que não buscou explorar certas consequências psicológicas, quando — dando um exemplo — a filha Merry, aos onzes anos, pede ao pai que ele a beije, “como ele beija a mamãe”. Philip Roth faz o pai beijar a filha na boca, mesmo que seja um beijo com conotação de inocência. O roteiro omite este fato importante, construtivo do perfil conflituoso de constante automutilação psicológica por parte de Seymor. Dentro do sonho perfeito, o que foi que deu errado? É o que a América passou a se perguntar nos anos 1960. O beijo, cercado de sua insignificância, entra na balança moral da culpa.
As mesmas questões valem para a senhora Dawn Levov, que da pobreza ascendeu à riqueza, não por méritos próprios, mas por fatores superficiais que compõem o velho sonho americano: a beleza (anglo-saxônica e irlandesa), elemento essencial para enfatizar o ideal de família perfeita. Era o que precisava o bem sucedido Seymor. Arrematar também o belo, colocando-o na vitrine familiar, para ser admirado. Dawn, a miss Nova Jersey, sem estrutura para suportar os contratempos, é obrigada a se internar em um sanatório, quando se depara com a triste percepção de que a princesa enlouqueceu.
Em suma. Não é nenhum demérito para o filme a afirmação de que ele não alcançou o livro. Primeiro, porque isto raramente acontece com transposições de obras literárias para as telas. Segundo, no caso específico da obra de Philip Roth, ele não estava apenas interessado em narrar uma “história fictícia”, senão preocupado em elevá-la a um patamar de discussões bem mais amplas, históricas, que vão permear e fundamentar a narrativa literária. Talvez fosse necessário aumentar a duração do filme para que o diretor tivesse mais espaço para aprofundar as discussões que a obra suscita. Em se tratando de cinema, seria talvez um risco. Então, melhor fazer o que o filme fez. Ater-se basicamente ao núcleo narrativo, a partir do qual e de acordo com as necessidades, ir pincelando na tela as cores históricas. Um dos recursos utilizados pelo diretor são as inserções de imagens da época, de conhecimento público, dando um ar documental ao filme, aproximando-o, mesmo que timidamente, da narrativa literária de Philip Roth. O filme é uma homenagem a esta imensa obra, e um presente para o espectador que queira se introduzir numa realidade urgente que vai além dos compêndios históricos dos Estados Unidos. O filme, de braços dados com o romance, vai ao encontro daquilo que faz parte propriamente da história universal. A vida feita de muitas ilusões e de terríveis desilusões.