Estou Pensando Em Acabar Com Tudo
O QUE FIZ DA MINHA VIDA?
O filme ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO (134’), roteiro e direção de Charlie Kaufman, EUA (2020), tem causado estranheza e certa confusão nos espectadores. Fotografia em tons sombrios, diálogos acorrentados a uma simbologia a ser decifrada, cenários abarrotados de detalhes acolhendo longas cenas, imagens intrusas, atitudes suspeitas, porão misterioso, volatilidade temporal, tudo leva à primeira impressão de que se trata de um filme de terror. Inclusive alguns o classificam como tal: terror psicológico. Conclusão perigosa, no nosso entender. Não bastasse, o filme tem recebido o inadequado rótulo de incompreensível. Esse parece ser o adjetivo que tem assustado alguns espectadores.
O fio condutor de Estou Pensando em Acabar com Tudo se dá pelo drama interior da personagem.
Um casal de namorados viaja para uma fazenda, em visita aos pais dele. Ficam na fazenda o dia todo, anoitece, e voltam para a cidade. Entretanto, no meio do caminho, param no colégio onde o namorado Jake estudara quando jovem, e onde hoje — essa é a cereja narrativa — Jake, idoso, trabalha como zelador. Como assim… idoso!
Admite-se. A trama é intrincada, com justaposições aleatórias de tempo e espaço. Mas esse é o poder criador do filme! O de transitar pelo espaço e pelo tempo como se fosse um grande palco sem coxias, sem cortinas, sem bambolinas, sem luz, sem plateia. Apenas a ação dos figurinos e da maquiagem para estabelecer a relação de tempo com o drama interior da personagem. É exatamente o que acontece — o fio condutor do filme se dá pelo drama interior da personagem.
Estou Pensando em Acabar com Tudo é um filme de uma clarividência humana terrível.
Quando se trata de memórias misturadas a alucinações, quebra-se a cronologia real, pois tudo acontece ao mesmo tempo, numa sequência racional improvável. No entanto, é possível perceber que as cenas se estruturam a partir de uma proposta do consciente, dando à narrativa uma organização inesperada. As imagens vêm e vão, algumas rápidas, como a imagem da mão envelhecida de Jake jovem dirigindo o carro, mas tudo é controlado para que se dê um significado real ao todo. Estou Pensando em Acabar com Tudo é um filme de uma clarividência humana terrível, quando nos alerta para o perigo de virmos a descobrir o quanto fomos incapazes de viver. Essa é a dor solitária da personagem zelador.
Jake, o protagonista de Estou Pensando em Acabar com Tudo, passou a vida no mesmo lugar onde nascera. Com a morte dos pais, até eles morrerem, passa a tomar conta da fazenda. Para se sustentar, emprega-se como zelador no mesmo colégio rural onde estudara quando jovem. Um ser tão apagado (esquisitão), tão inexpressivo, que sua biografia não cobriria dez páginas de um livro. É assim que vamos encontrar o velho Jake: preparando-se para mais um dia de trabalho.
Será então a hora de o velho Jake pôr fim a tudo.
Tomado de amargura, crivado de frustrações, Jake é um homem que não se realizou como tal. Sem o exercício saudável do afeto e do sexo, incapaz de se expressar, essa é sua condição humana. E é assim que ele se apresenta no dia do filme, quando as coisas parecem ter tomado proporções ainda mais alarmantes. Enquanto vai limpando os corredores do colégio — é noite —, ele vai reconstruindo uma felicidade impossível. Imagina-se estar namorando uma garota por quem se apaixonara quarenta anos atrás, mas que, por total incapacidade de se mover, dela não se aproximara.
E aqui chegamos ao ponto central da trama. É a garota de quarenta anos atrás quem alimenta o filme de ilusões, de frustrações, de memórias, de desesperanças, da sensação de que a vida se perdera e nada mais resta senão acabar com tudo. É dela que ouviremos repetidas vezes a decisão — estou pensando em acabar com tudo. Quando a alucinação de Jake chega de carro ao colégio, é o momento de parar de alimentar o mundo paralelo e voltar para a realidade indesejada. Será então a hora de o velho Jake pôr fim a tudo.
Ora, se entrarmos na realidade, vamos ter que agir!
“As pessoas pensam de si mesmas como pontos luminosos se movendo no tempo. Mas provável seja o contrário. Estamos parados, é o tempo que passa por nós, soprando como o vento frio, roubando nosso calor, nos ressecando e nos congelando.”. Esta é a visão da existência de Jake pelo próprio Jake! É o sentido de inutilidade, de apatia, de preferir se entregar nas mãos do milagre que nunca acontece. É o transferir para outrem a responsabilidade de termos que viver, e viver significa transitar pela realidade, onde vamos encontrar de tudo, os prós a nosso favor, que nos alegrarão e nos levarão ao sucesso, e os contras, que nos empurrarão penhasco abaixo.
Ora, se entrarmos na realidade, vamos ter que agir! Não temos como ficar parados, presos à lamentação de que a sorte não nos brindou com as qualidades sonhadas de um ser poderoso e ativo. Jake construiu para si uma vida que não viveu, e desta construção, em seu último instante, gerou este belo filme que fala da velhice, da solidão, do sentimento de fracasso, do medo, da incompreensão, e acima de tudo, mostra como a ausência do afeto resseca nossa alma e nos transforma em um fantasma insepulto.
Outro ponto a se destacar em Estou Pensando em Acabar com Tudo são as interpretações dos atores.
O mais interessante na construção do roteiro, mesmo que dominado por vigorosos diálogos, em um formato existencial inigualável, é estar ele intimamente colado às imagens, numa construção artística bastante próxima de um Ingmar Bergman. Os diálogos existem para fazer as imagens clamarem para serem vistas e compreendidas, numa construção fílmica que se alça em pungentes sensações de uma alma em desespero. E neste desespero fica a impressão para o espectador de que as pontas estão soltas, nada faz sentido, a visão não é panorâmica, pelo contrário, rasteja na silenciosa melancolia do zelador.
Na loteria genética, deu azar. Jake ficou com a pior parte.
Outro ponto a se destacar em Estou Pensando em Acabar com Tudo são as interpretações dos atores. Eles carregam suas personagens como seres humanos sofridos, derrotados, destoando dos ritmos que a vida lhes impõe. Recusam-se a serem seres humanos normais. O Jake jovem, com seu tom enigmaticamente monocórdio, de um pobre coitado inteligente e culto — o que por si só já é uma contradição —, parece apenas viver para purgar o pecado de estar existindo. É como ele se reconhece: na loteria genética, deu azar. Ficou com a pior parte.
Para mencionar o elenco, em construções de perfis primorosos, temos o Jake jovem encarnado por Jesse Plemons; Lucy, a namorada, por Jessie Buckley; os pais de Jake, fenomenais, variando seus perfis como que projetados por um ilusionista, ela, a mãe, Toni Collete, o pai, David Thewlis. E, por fim, o zelador, o que alucina a narrativa e lhe dá sentido, Guy Boyd.
A volatilidade temporal de Estou Pensando em Acabar com Tudo nos submete a um jogo cênico aparentemente indecifrável.
Como forma de se suprir, Jake projeta na namorada, que varia de nome, conforme a idealização que ele faz dela — ora pintora, ora poeta, ora… —, o seu próprio eu. Ela é o eu de Jake, sem que Jake dê ao feminino a oportunidade de ser mulher. Tanto é verdade que o momento especial de afeto e entrega se dá no encontro do velho Jake (o real) com sua desejada namorada (o imaginário) de quarenta anos atrás. É quando a consciência da perda vai tirá-lo da fantasia e direcioná-lo para a decisão final. A dança será apenas a última alegoria do acasalamento que nunca aconteceu. E na sequência, a morte do noivo pelo Jake na meia idade será o golpe fatal. Um basta!
Antes de finalizar, vale fazer uma pequena demonstração do grau de eficiência da volatilidade temporal a que o filme nos submete. Parece-nos, à primeira vista, indecifrável, mas não é. Só dá um certo trabalho para compreender.
Eis que se dá o encontro fantástico entre o nascimento (camisola) e a morte (uniforme).
Vamos pegar a cena em que Jake jovem está dando papinha para a mãe decrépita, acomodada numa cadeira de rodas, vestindo camisola. A cena se inicia por volta do minuto sessenta e dois do filme. Aqui temos dois tempos distintos. Jake jovem e mãe decrépita. A namorada abandona o quarto alegando deixar os dois, filho e mãe, na sua intimidade. Na sequência, após a bela cena da escada — que se rebobina —, a namorada, ao descer, por volta do minuto sessenta e cinco, encontra o pai, também na decrepitude, acompanhado do Jake jovem. O pai oferece a ela a mesma camisola agora manchada da papinha do bebê Jake. São três tempos distintos. Bebê Jake, Jake jovem, pai decrépito. Na sequência, minuto sessenta e sete, a mesma camisola está agora nas mãos da mãe na meia idade de Jake, que pede à namorada que coloque a camisola manchada da papinha do bebê Jake na máquina de lavar roupa que se encontra no porão. Aqui temos três tempos convivendo simultaneamente, mãe meia idade, namorada do Jake jovem e o bebê Jake. A namorada, na sequência, minuto sessenta e oito, desce até o porão, e ao abrir a máquina de lavar roupa, já em funcionamento, descobre que os uniformes de zelador do velho Jake estão sendo lavados. Aqui se dá o encontro fantástico entre o nascimento (camisola) e a morte (uniforme), o bebê Jake com o velho Jake zelador; e, no meio deles, o terceiro tempo representado pela namorada. Portanto, percebam a alucinação temporal, de uma precisão cirúrgica, que o filme nos oferece nas suas magníficas metáforas.
Essa é a “confusão” inicial de Estou Pensando em Acabar com Tudo.
Na tentativa de explanar mais claramente a questão da confusão aparente que o filme parece gerar, conduzindo a compreensão do espectador para caminhos diversos, vamos nos ater a mais uma percepção. Se é ponto pacífico que o filme é movido pelas alucinações do solitário velho Jake — apenas Zelador —, esta percepção o filme não nos oferece de imediato. As cenas iniciais, enquanto a namorada está na calçada esperando o namorado, são disponibilizadas diante de nossos olhos de forma aleatória. Vemos na sequência a casa da fazenda, o velho Jake e, por fim, o Jake na meia idade espiando da janela, enquanto a namorada, lá embaixo, espera o namorado Jake. Tais cenas são insuficientes para nos alertar sobre o que realmente está acontecendo. Essa é a “confusão” inicial de Estou Pensando em Acabar com Tudo.
Não é uma narrativa normal, com começo, meio e fim. E isso só percebemos quando o filme está se encaminhando para seu final.
Em suma. Quando estamos quase sendo capazes de montar o quebra cabeça, o filme já está praticamente no fim. E teremos que admitir que fomos pegos numa armadilha. Na ânsia de entender o que se passa, fomos perdendo detalhes importantes e decisivos, o que nos traz a sensação de estarmos assistindo a um filme incompreensível. Aconselhamos a rever esse poderoso filme Estou Pensando em Acabar com Tudo. Uma ou até duas vezes. Será um exercício prazeroso, feito de pequenas surpresas que nos levará ao ponto que interessa — a entrar em contato com um ser humano que, ao chegar à velhice, tenta significar a dor de ver que sua vida passou sem que tivesse sido vivida.
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