Roberto Gerin

Resenha Destacamento Blood, por Roberto Gerin

A LUTA TEM QUE CONTINUAR

O filme DESTACAMENTO BLOOD (135’), direção de Spike Lee, EUA (2020), nos leva para dois lugares bem conhecidos: de um lado, as lutas por direitos iguais entre negros e brancos e, do outro, a Guerra do Vietnã. É a partir destes dois fatos históricos, marcantes na vida dos norte-americanos na década de 1960, que Spike Lee, que também assina o roteiro com Kevin Willmott, Danny Bilson e Paul Demeo, tira sua seiva político-dramática para nos brindar com mais um belo filme. E em Destacamento Blood Spike Lee continua sendo Spike Lee. Não disfarça sua irritação com a sociedade norte-americana, incluindo aí as decisões políticas de recrutamento de soldados afro-americanos para servirem de “bucha de canhão” em mais uma guerra desastrosa.

Spike Lee não se cala sobre a política nefanda em relação à composição étnica das forças de guerra.

Segundo estatística veiculada no filme pela rádio inimiga — os vietcongues —, à época, década de 1960, a população negra somava apenas onze por cento do total da população dos Estados Unidos. No entanto, trinta e dois por cento do efetivo das tropas que lutaram no Vietnã eram de jovens negros, o que deixa exposta a política nefanda em relação à composição étnica das forças de guerra. Spike Lee não perde a oportunidade de escancarar essas verdades. Em um gesto de puro protesto, insere no filme imagens de heróis negros, além de composições de Marvin Gaye, em mais uma homenagem à cultura afro-americana.

O filme chega em boa hora. Evidencia os horrores racistas que teimam em se alastrar mundo afora, ano após ano, em suas mais diversas maldades — seja em um campo de futebol, seja nas ruas de Minneapolis, seja nas favelas do Rio de Janeiro. No entanto, cabe deixar claro: o filme não trata só dessa temática. O que vamos ver são relações humanas construídas em bases frágeis, onde as questões histórico-raciais se confundem com as questões pessoais, de foro íntimo, mas que são determinantes na condução da trama.

Destacamento Blood existe para que quatro amigos cumpram uma promessa.

Nesse diapasão, Destacamento Blood não economiza imagens para alcançar seu objetivo. O de nos mostrar como o mundo parece trilhar por caminhos equivocados. Em dado momento, ficamos com a sensação de que todas as maçãs apodreceram. Para que renasça em nós a esperança por dias melhores, é preciso urgente colher maçãs saudáveis para substituir as antigas. A impressão que nos fica é clara: a luta tem que continuar.

Quatro amigos negros que haviam feito parte de uma operação de resgate de uma vultosa quantidade de ouro presa nas entranhas de um avião abatido pelos norte-vietnamitas agora se reencontram na cidade de Saigon, Vietnã, em pleno século XXI, com dois objetivos a serem alcançados.  Reúnem-se, primeiro, para resgatar o corpo do chefe, o também negro Norman (Chadwick Boseman), um ativista social na linha de um Martin Luther King Jr. — Spike Lee ressalta esta semelhança com toda precisão —, e que fora morto na operação (fracassada) de resgate do ouro. Apenas vão cumprir uma promessa feita lá trás — a de que um dia retornariam ao Vietnã para levar o corpo do amigo, enterrado nas selvas vietnamitas, de volta para os Estados Unidos.

Acima de tudo, é preciso prender a atenção do espectador.

A segunda missão é mais delicada. Envolve encontrar a caixa cheia de barras de ouro, também enterrada por eles em alguma encosta da selva. O ouro pertence aos Estados Unidos, mas eles o querem para si, por justiça, pois se veem no direito de reivindicar o tesouro. Não se trata de um roubo, e sim do pagamento de uma dívida. Afinal, milhares de negros deram suas vidas por uma guerra que não lhes pertencia. Este é o acabamento moral a que se agarram para justificar a decisão ilegal.

Qualquer roteiro, para funcionar bem, tem que se submeter a um quebra-cabeça montado à revelia da realidade. Não que a realidade não interesse. Ela apenas não pode ditar todas as regras. Acima de tudo, é preciso prender a atenção do espectador. Se este é o fim último, tudo é válido, inclusive virar as costas para o óbvio.

Destacamento Blood privilegia a exposição das questões pessoais, tão ao gosto de Hollywood.

Se os quatro Blood — Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock), além do filho de Paul, David (Jonathan Majors) — chegassem ao Vietnã, calados, e de lá saíssem mudos, com o corpo de Norman e as bolsas abarrotadas de barras de ouro, pouco se tiraria de tensão dramática e expectativas de tragédia. É preciso expandir a trama para fora de seu núcleo básico, para que ela seja retroalimentada — exposta a descontroles, a ganâncias e a imprevisibilidades. Para que isso aconteça, às vezes a realidade de fato atrapalha.

E foi o que aconteceu. Antes de adentrarem a selva em busca do ouro, os quatro amigos se encontram com um agente da ilegalidade, um distinto francês, Desroche (Jean Reno), que facilitará a lavagem do “roubo” do ouro, dando um destino clandestino mais seguro aos sete milhões de dólares em barras. Ao denunciarem a existência de tamanha fortuna, ativam polos contrários, desestabilizando o equilíbrio do grupo. Os conflitos se expandirão nas ações emocionais de cada um dos envolvidos, elevando a mil as possibilidades de desfecho da trama.

Destacamento Blood aproveita para expor os erros cometidos pelos Estados Unidos na desastrada guerra do Vietnã.

A partir do imbróglio acima delineado, transparece uma proposta interessante do diretor — a de trazer para dentro do grupo as angústias geradas pela desastrada Guerra do Vietnã, que dizimaria milhares de norte-americanos e vietnamitas, deixando na região marcas profundas que subsistem até hoje. Não à toa, os ressentimentos dos cidadãos vietnamitas em relação ao grupo de veteranos são trazidos à tela, sem qualquer sutileza. O objetivo de Spike Lee, nos parece, é repetir a história. Inclusive com seus erros. Que (com certeza) foram importados dos Estados Unidos. Afinal, Spike Lee quer falar do negro no mundo, não do negro no Vietnã.

Mas há uma outra faceta que Destacamento Blood explora e que vai possibilitar a consistente construção artística do filme, afastando-o de veleidades panfletárias e de cunho documentarista. Spike Lee não é bobo. Ele sabe que precisa se valer das relações humanas para impulsionar seus voos políticos, sem correr o risco de perder fôlego. Por isso, traz para a tela a personalidade complexa, conturbada, e às vezes incompreensível, de Paul, um dos quatro Blood, o mais próximo do chefe amigo Norman.

Foge à tirania funcional dos flashbacks, tornando o ritmo mais fluido e envolvente.

A imagem — ou fantasma — de Norman persegue Paul dia após dia, desde que retornara da Guerra do Vietnã. Sua participação na trama é tão forte e decisiva, que poderia ser eleito o protagonista. E o mais importante. O que sustenta a composição conflituosa da personagem Paul é a culpa. Eis o que o move em direção ao desastre. A última cena de Paul, sozinho na selva, fugindo de seus gananciosos perseguidores, é de um primor de representação que por si só valeria a indicação ao Oscar para Delroy Lindo. Paul precisou da expiação para entender que ele não teve culpa pelo que aconteceu no passado. É a partir da expiação de Paul que entendemos as motivações subliminares que conduz o filme à sua grandeza.

Vale ressaltar uma decisão interessante (e feliz) tomada pelo diretor. A narrativa de Destacamento Blood acontece em dois tempos, separados um do outro por quase cinquenta anos. No entanto, o principal foco narrativo concentra-se nos dias atuais. Ao tomar a decisão de utilizar os mesmos atores, sessentões, para representar também acontecimentos antigos — a operação de resgate do ouro —, o diretor dá uma outra dimensão aos fatos. Foge à tirania funcional dos flashbacks, tornando o ritmo mais fluido e envolvente. Como se tudo fizesse parte de um só tempo e espaço. Essa linearidade temporal favoreceu o envolvimento do espectador com a trama, colo

Destacamento Blood reforça a ideia de que o silêncio pode ser a pior das cumplicidades.

Em suma. As receitas de bolo que Hollywood impõe a seus filmes às vezes chegam a ser irritantes. Mas não podemos desprezá-las. Ao abrir a vultosa conta bancária para produzir um filme, sabe-se que não se podem cometer erros, afinal, o dinheiro tem que voltar para o bolso. Destacamento Blood não foge à regra. No entanto, cabe ao artista contornar essas imposições com algumas doses de ousadia, em que imporá seu estilo pessoal à produção da obra. Os grandes diretores trilham essa máxima, e Spike Lee é um deles, quando se propõe a usar a arte como um campo de luta social.

Sabemos que fazer arte é um ato político, e não há nada de errado nisso. Pelo contrário. Ao revelar atitudes políticas é que a arte se faz e se perpetua. Diante de tantas desigualdades e preconceitos que solapam a civilização moderna, o silêncio é uma atitude perigosa, que apenas reforçará uma realidade indesejada. O silêncio pode ser a pior das cumplicidades. Eis a razão por que Spike Lee faz tanta questão de gritar.

 

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