Gritos E Sussurros
TUDO NÃO PASSA DE MENTIRAS!
O icônico filme de Ingmar Bergman, GRITOS E SUSSURROS (90’), Suécia (1972), nos remete a um mosaico de sensações perturbadoras e sentimentos imprecisos, os quais vamos experimentando ao longo de uma sequência de cenas de gritos e sussurros. Por trás de cada sussurro, há algo que não é revelado. Por trás de cada grito, uma dor que insiste em ficar calada. É a inconfundível percepção de que a vida nos arrebata para o nada. Bergman, em noventa minutos, faz um laboratório de conflitos da existência humana. Ele parece nos colocar frente à nossa terrível incapacidade de compreender nossos próprios movimentos. E esta incompreensão nos sufoca.
Agnes, morando numa suntuosa casa de campo da família, padece de doença crônica e é assistida pela serviçal Anna, de quem recebe cuidados e afeto. Eventualmente, recebe a visita das duas irmãs, Maria, casada com Joakim (Henning Moritzen), e Karin, casada com Fredrik (Georg Ârlin). O filme se situa no momento em que a saúde de Agnes piora. É neste clima de doença e morte que as três irmãs se reúnem pela última vez.
Ao confrontar presente e passado, vão emergindo três personalidades constituídas dentro de uma mesma família, ou, mais precisamente, três mulheres refletindo a herança maldita de uma mesma mãe. Bergman não esquece a mãe para explicar o adulto. Aqui, em Gritos e Sussurros, ele começa a discutir essa relação destrutível entre mãe e filha, e que ele viria a aprofundar mais tarde, em Sonata de Outono, 1978.
A estrutura existencial do filme se assenta, portanto, no afeto, um exercício humano básico, mas que, mal desenvolvido, pode vir a ser devastador na vida adulta.
Agnes (Harriet Andersson) passa a vida procurando o afeto que lhe foi negado pela mãe. E mesmo assim, purgando suas dores, relembra a mãe com carinho e respeito. Tem na compreensão o álibi para a sua infelicidade.
Maria (Liv Ullmann), presa emocionalmente à infância, exige das pessoas com quem convive excessos de afeto para poder fazer valer sua condição de filha preferida. E, como a menina mimada, ela oferece o afeto para logo em seguida pedi-lo de volta. O afeto é dela, propriedade sua. Como uma barra de chocolate.
Karin (Ingrid Thulin), a terceira irmã, se refugia na frieza como forma de negar sua necessidade de afeto ausente. Não tenho necessidade nenhuma de ser perdoada, proclama Karin, que irá protagonizar uma das cenas mais terríveis – e perfeitas – do cinema. Karin representa a dor petrificada. Dor que destrói. Mas ela encontra na razão o controle do seu viver. É a lucidez que a mantém longe do abismo.
E, por fim, Anna (Kari Sylwan), a criada que, ao perder a filha ainda criança, canaliza sua dor e seus afetos para a enferma Agnes. Mesmo esse afeto, que aparenta ser verdadeiro, é ele construído em cima de uma história psíquica e não fruto espontâneo de um mero exercício humano.
Assim tecemos o painel existencial das três irmãs, evidente, existências perturbadas que vão explodir em sofrimentos e desilusões.
E para traçar este painel terrificante, e sumariamente irônico, em exuberantes vermelhos e brancos, o artista Bergman se vale das poderosas armas que possui. E aqui vale descrevê-las, rapidamente, uma a uma. É o Bergman dominado pela sua ganância estética, da qual faz, neste magnífico trabalho, sem pudores, uso absoluto.
Sua rigorosa preparação de atores, aprendida e treinada nos palcos dos teatros suecos, é trazida para o filme em dimensões quase épicas, como se ele ousasse colocar o teatro dentro do cinema, nos parece, com um único objetivo. O de que seu filme Gritos e Sussurros tomasse proporções humanas assustadoras.
Esta impressão é reforçada pelos demorados e fechadíssimos closes sobre o rosto das atrizes, deixando que os movimentos faciais exalem os sentimentos e as emoções que vão desenhar o horror da condição humana. A próxima dor pode explodir num simples olhar, como a cena de Agnes, logo no início do filme, supurando desesperadamente sua dor física. É teatro vivo, em quadros cinematográficos. Com exageros, talvez. Mas é o demoníaco Bergman se apoderando dos recursos técnicos da arte do cinema com a finalidade de eternizar a vida em momentos que só são oferecidos pelo teatro, essa arte viva do instantâneo.
Os cenários, de uma exuberância massacrante, são construídos pelo excesso de detalhes, em formas e cores, que vão compor a essência dominante da matéria rica sobre a alma aprisionada. Tudo é aparência, nos diz Bergman, com seus cenários cuidadosamente opressivos.
A outra arma, muito conhecida, e que inclusive levou Sven Nykvist a ganhar o Oscar, é a fotografia, de um vermelho descarado que, como diria o próprio Bergman, retrataria as camadas da alma humana.
E os figurinos? Exuberantes, assustadores, desenhados por mãos mágicas, onde predominam os tons brancos.
E, para finalizar, vamos falar dos homens. Como se percebe, eles têm presença quase inexistente. Para alguns, nenhuma importância. Parece-nos que é o contrário. São tão importantes que não precisam aparecer. É a mulher que se debate dentro de um sistema construído e imposto pelo homem, portanto, quem tem que gritar é a mulher! Não há gritos e sussurros para homens neste filme. Mesmo para Joakim, que tenta o suicídio por causa da traição da esposa, Maria. Ora, caro espectador, nesse sistema de códigos de honra, o que pesa mais, a traição da mulher ou a perda da posse da mulher para outro macho?
A estrutura social colocada acima nos leva para onde? Para um tema que é muitíssimo caro a Bergman. O casamento. Este é o pano de fundo do filme.
O que é o casamento senão a oportunidade para exercitar o afeto? Pois, então. O vazio criado pela ausência de exercícios de afeto gera a mentira. Esta é a razão, nos parece, da falência dos casamentos bergmanianos. Para os infelizes, de lado a lado, só restam duas atitudes. Para o homem, o domínio da frieza; para a mulher, a lucidez do grito, como faz Karin, ao proclamar que “tudo não passa de uma série de mentiras!”. Há quem grite, há quem sussurre, mas, no final das contas, a infelicidade é a mesma.
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