Clube Da Luta
A VIOLENTA BUSCA DE SI MESMO
Quando se fala de filmes que esbanjam, em suas entranhas, muita violência, pensa-se logo em Quentin Tarantino. Muito bom, ótimo. Mas não existe só Tarantino. Há outras boas opções nas prateleiras. E uma delas é o icônico e violento CLUBE DA LUTA (139’), direção de David Fincher, Alemanha/EUA (1999). Mesmo para os que não gostam da violência aparentemente sem sentido — todas são! —, vale encarar (com muita pipoca) Clube da Luta, filme inteligente, intrigante e assustador.
A violência em Tarantino jorra de memoráveis diálogos. A violência em David Fincher, apesar de também fazer espirrar sangue, tem outra pegada. O que importa é o sangue que jorra da ação premeditada, a ação que precisa destruir para encontrar, debaixo dos escombros, o que se procura. É Jack, o protagonista, precisando dar porradas para descobrir quem realmente ele é. Quanto mais porrada, mais ele vai se aproximar de si. Parece ser esta a proposta psicofilosófica do filme.
Clube da Luta é um filme que se extrapola na violência, tudo bem. E na rebeldia sem causa, em que o alvo é contestar a ditadura do consumo sem necessidade. Mas é também um filme que se excede em significados que vão além da realidade visível, fazendo com que o espectador navegue por águas abstratas. Mas logo o espectador vai percebendo estar diante de manifestações psíquicas perturbadas por embates entre “eus” — o existente e o imaginário, o “eu” construído, que aprisiona, e o “eu” a ser desconstruído, que libertará. Esta é a proposta existencial. A de que a conquista da liberdade só é possível pela destruição.
Mas Jack não se dá conta de que o outro é ele.
Da implosão dos prédios das empresas de cartão de crédito ressurgirá o novo Jack! Por isso ele quer implodir os prédios. Ele precisa. Nem que seja mentalmente! Mas chega uma hora em que é preciso parar e perguntar. Afinal, Jack está querendo destruir o quê? O “eu” que o perturba, a ponto de não o deixar dormir, ou essa é a desesperada tentativa de encontrar (sob os escombros) o outro “eu”, o “eu” liberto e apaziguado, livre dos conflitos materiais? Depois de tudo o que foi dito, caberá ao espectador escolher. Ver apenas o que está na tela, diante de seus olhos, ou em ir além, na tentativa de vislumbrar o que de fato acontece nos bastidores mentais de Jack. Será uma desafio e tanto. Porém, prazeroso.
Jack (Edward Norton, soberbo no papel), o protagonista, que também faz as vezes do narrador, recurso eficiente utilizado pelo roteiro, é um jovem e bem-sucedido executivo que trabalha em uma empresa de seguros. Em dado momento de sua vida, as coisas começam a não dar certo. Vê-se às voltas com intermináveis insônias. Jack não dorme há meses, e como ele mesmo diz, na voz do narrador, “com insônia, nada é real. Tudo é longe. É tudo cópia de cópia de cópia.” E ainda sobre a sua compulsão de consumo. “Eu folheava os catálogos e me perguntava. Que tipo de porcelana me define como pessoa?” Ao buscar ajuda médica para curar a insônia, o médico foi taxativo. “Você tem que relaxar.” Jack insiste. “Me dê alguma coisa, por favor!” E o médico corta o barato de Jack. “Não, você precisa de sono natural e saudável. Masque umas raízes de valeriana e faça mais exercícios.” Mas Jack continua insistindo. “Qual é! Eu estou sofrendo…” E o médico retruca. “Quer ver sofrimento? Apareça na Igreja Metodista, às terças feiras. E veja os caras com câncer testicular.” Resumo da ópera. Jack vai à Igreja Metodista, na terça à noite.
Lema de Clube da Luta: não se pode morrer sem ter ao menos uma cicatriz.
E Jack fica viciado em grupos de autoajuda. “Alcoólicos anônimos”, “Positividade Positiva”, “Tuberculose, agora podemos combatê-la”, “Câncer de Pele”, “Renal crônico”, enfim, estas andanças por grupos noturnos trazem-lhe certa paz e o sono de volta.
Até que, em um dos encontros das terças-feiras, na Igreja Metodista, onde todos pensavam que ele também havia perdido os seus testículos, aparece quem arruinará todos os seus planos de recuperação pessoal. Ela, Marla Singer (Helena Bonham Carter), no grupo de homens com câncer de testículos? Como narra Jack. “Ela era uma mentirosa!” Marla passou a frequentar os mesmos grupos que ele, o que lhe parecia um tipo de perseguição. Como ele, ela não tinha doença alguma. Agora, com Marla no pedaço, tudo volta à estaca zero. As malditas insônias! E Jack conclui, com humor. “Se eu realmente tivesse um tumor, eu o chamaria de Marla.”
Um dos saudáveis méritos do filme é o uso inteligente do humor. Tão inteligente, que se torna imprescindível. Não conseguimos imaginar a narrativa sem o riso. Por sugestão de Jack, para se ver livre de Marla, ele divide com ela os grupos de doenças. Cada um frequentará apenas os próprios grupos. E o humor se escancara quando disputam quem vai ficar com o grupo do “Câncer no Intestino”. Fica assim demonstrado como o filme, dentro da sua proposta, tendo como trampolim esta realidade cruelmente irônica, vai aos poucos alçando a narrativa para a esfera do irreal, em sua dimensão de dualidade. O conflito pessoal de Jack será teleguiado por imagens absurdas da busca de si mesmo através da violência. O humor apenas prepara o caminho desse absurdo. Feito o acordo da separação dos grupos, cabe agora a Jack e Marla se despedirem para sempre. Mas está faltando algo. Ah, sim! Trocam telefones. Está fechado o acordo da loucura. Não. Pior que ainda não. Pois falta Tyler Durden!
Tyler é o produto rebelde (libertador) da criação imaginária de Jack.
Tyler Durden (Brad Pitt) entra na narrativa justamente quando Jack tem seu primeiro impulso suicida. Imagina o avião em que viaja sofrendo um terrível acidente. É assim que Jack percebe Tyler sentado na poltrona a seu lado. Tyler será, a partir de agora, seu companheiro idealizado. Mesmo quando ele diz a Tyler, admirado. “Temos valises idênticas!”
Ao chegar em casa, Jack fica sabendo que seu apartamento pegara fogo, estranhamente, por vazamento de gás. Nada restou dos seus badulaques. Sem amigo, sem parentes, procura onde ficar. Tem dois números de telefone no bolso. De Marla Singer e de Tyler Durden. Vai morar com Tyler.
Nisto se passaram uns quarenta minutos de filme. Tudo bem. Restam ainda quase duas horas! E o espectador, a partir desse ponto, vai assistir a Clube da Luta sozinho. Vai embarcar junto com Jack e Tyler em uma viagem tresloucada, a realidade se manifestando através do inconsciente, mas em planos paralelos. Sim, o conflito ditará as regras do clube de luta. É o conflito pessoal de Jack que, aprisionado por regras de consumo que oferecem a ele uma ideia errada de si mesmo, vai ser canalizado para a destruição de si, que, evidente, contempla primeiro a destruição da civilização. Afinal, é esta civilização adoecida que simboliza o que há de pior em Jack. E a única esperança de Jack é acreditar, sem o saber, que Tyler viera para ajudá-lo nesta dura empreitada da busca pelo autoconhecimento.
O Clube não é sobre ganhar ou perder. Depois da luta, não há resultado.
Tyler vai apresentar a Jack uma nova filosofia de vida. Como diz ele a Jack. “As coisas que você possui acabam possuindo você.” Eis a cereja filosófica! E para confirmar esta doce e benigna filosofia, que exala significados profundos e insondáveis, Tyler faz a Jack o pedido enigmático. Que Jack bata nele, sem dó, o mais forte que puder. E ele justifica. Não se pode morrer sem ter ao menos uma cicatriz. É a primeira luta. E tudo que é a primeira vez torna-se inesquecível. Ao final, recompondo-se do sangue, Jack diz. “Podíamos fazer isso de novo um dia desses.” Aqui é o momento em que o filme oferece ao espectador o seu cartão de visita. A luta vai finalmente começar.
No minuto 43, encontram o subsolo onde o Clube da Luta é criado, com regras definidas por Tyler e Jack. Tyler, evidente, é o líder, porque ele é o produto rebelde (libertador) dessa criação imaginária de Jack. Jack, enquanto não se libertar, ainda será um produto de consumo, uma estatística sob controle, e o controle desta estatística, sabemos, é o cartão de crédito. E a primeira regra, repetida à exaustão, a senha do abre-te sésamo da violência é: “você não fala a respeito!” Óbvio, não falarmos de nós mesmos é a lei que nos condena à escuridão existencial.
O Clube tem outras regras que se ocultam em demandas psicológicas. O Clube não é sobre ganhar ou perder. Depois da luta, não há resultado. Esta é a essência, o prazer ligado à ideia de autodestruição. De morte. Da busca pelo limite. A dor física é secundária. Quando, após a luta, lavando-se, Jack puxa um dente que se solta de sua boca e mostra-o a Tyler, este o consola. “Ei, até a Mona Lisa está caindo aos pedaços.” Não há limite, de fato. Ainda. Porque o limite será “ouvir o som da morte”.
Clube da Luta é um filme linear que foge, graças à edição, à própria linearidade.
E, para finalizar esta digressão, chegamos ao objetivo do Clube da Luta — chegar ao fundo do poço. Ao limite extremo, onde as barreiras se desfazem. O Clube da Luta é o grande presente que Jack e Tyler oferecem à humanidade. Só que quando o Clube sai dos porões e vai para o mundo visível, ele se transforma em “Projeto Destruição”. Afinal, atingir o fundo do poço não é para qualquer um. E quando ele, em alta velocidade, numa rodovia, se joga num espetacular acidente de carro precipício abaixo, o que lhe resta exclamar? Na voz de Tyler? “Acabamos de experimentar o limite da vida!” Eis o fundo do poço. “Só depois que perdermos tudo é que estaremos livres!” Na visão redentora de Tyler, Jack tinha que passar por este processo. Para Jack, espera-se que seja o processo da cura.
O filme é baseado em livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk, que chegou a afirmar gostar mais do filme do que do próprio livro. E diz ainda o quanto foi assediado por homens e mulheres para que ele informasse onde eles poderiam encontrar estes tais clubes de luta. A repercussão do filme e o fato de ter-se tornado o retrato de uma época, os anos 1990, nos revelam que a violência é sempre um ícone desfigurado de sociedades em constante transformação. Mas é, antes de tudo, o retrato de uma realidade que precisa de catarses para se reequilibrar, e a violência parece ser o caminho mais curto para se alcançar este equilíbrio. E não interessa qual o tipo de violência. Pode ser o soco, ou um simples olhar raivoso. Uma fake news. Esta foi a sacada de Chuck Palahniuk, cujos parâmetros o filme, uma arte puramente visual, leva ao extremo. Afinal, ver o sangue jorrando choca mais do que apenas imaginá-lo jorrar. Mas, por incrível que parece, Clube da Luta é pura imaginação. Porque vai muito além das imagens.
E é disto, enfim, que trata o filme. Da busca desesperada da transformação pela descoberta de si.
O filme sobreviveu e vai se tornando aos poucos um clássico, muito em função de suas qualidades técnicas. O roteiro é consistente porque bebe de uma ideia consistente. A direção não teve medo de ousar. As atuações mantiveram, com extrema eficiência, o ritmo sombrio do filme. O início, no momento dos créditos, com o jogo de imagens que lembram pesadelos, acompanhadas por uma sonoplastia de pegada asfixiante, nos introduz maravilhosamente na atmosfera do filme. Mas a cereja é a edição. Uma edição que conhece profundamente a essência do filme, eis seu mérito. Controla os movimentos, determina o ritmo, quebra sequências, inserindo flashbacks ou antecipando cenas no tempo, num vai e vem de bumerangue. Clube da Luta é um filme linear que foge, graças à edição, à própria linearidade.
Em suma. Ainda falta quase meia hora de filme quando há o encontro definitivo da revelação. Tyler força Jack a dizer o que ele próprio queria ouvir. Jack queria ser diferente, mas não conseguiria isto sozinho, e Tyler passa a ser o espelho do que Jack sonha em ser. “Tudo o que quisera ser, este sou eu.”, diz Tyler. E continua. “Eu pareço e transo do jeito que você quer parecer e transar.” E segue. “Eu sou liberado de todas as maneiras que você não é.” “As pessoas fazem isso todos os dias. Falam consigo mesmas, vêem-se como gostariam de ser.” E conclui. “Você ainda se debate um pouco, é por isso que às vezes você é você.”.
Aos poucos, Jack está se transformando em Tyler Durden, o seu eu definitivo. E é disto, enfim, que trata o filme. Da busca desesperada da transformação pela descoberta de si. Numa sociedade do vale-tudo, ditado pelas cifras do capitalismo, a selvageria é talvez a única forma de expressão de que dispomos para tentar mudar alguma coisa. Só que o embate, isto o filme deixa bem claro, não está com a humanidade, está em nós. E esta é a razão por que ficamos sentados no meio-fio, falando sozinhos, esbravejando, apontando o dedo no ar. Estamos apenas querendo nos enxergar.
E assim, na meia hora final, a narrativa, até então em voo de cruzeiro, vai lenta e espetacularmente aterrissando rumo a seu desfecho glorioso. A revelação estará depois da última frase do filme. Que é quando Jack não fala, mas já descobriu que agora ele se chama… Tyler Durden!
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