Roberto Gerin

Resenha Sonata de Outono

SER MÃE E SER MULHER

Assistir ao filme de Ingmar Bergman, SONATA DE OUTONO (99’), Suécia/Alemanha (1978), é acompanhar bem de perto, em closes magníficos, uma sequência devastadora de embates entre mãe e filha. Ou entre filha e mãe? Não. Mãe vem primeiro, então sempre será relação mãe-filha, “essa mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição”. Sim, estas são as palavras do roteirista Bergman, ditas pela boca amarga de Eva, a filha.

O filme narra a tumultuada relação entre a mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), uma pianista famosa, e suas duas filhas, Eva (Liv Ullmann), casada com o pastor Viktor (Halvar Björk), e Helena (Lena Nyman), vítima de doença degenerativa. Após sete anos sem se verem, a convite de Eva, Charlotte vai passar alguns dias na casa da filha, no sul da Noruega. A mãe, que há anos havia colocado sua filha doente num asilo, com a sensibilidade de quem coloca uma coisa inútil num depósito, surpreende-se ao encontrar Helena na casa de Eva. As circunstâncias para que os tumores emocionais supurem estão dadas.

A chegada de Charlotte à casa da filha, logo no início do filme, segue os padrões cênicos do cinema mundial. Charlotte desce do carro, abre o porta-malas e vai pegar as malas que ali estão. Eva, feliz, se antecipa à mãe, pega ela mesma as duas enormes malas amarelas e sai carregando os dois pesos com tanta desenvoltura que fica logo evidente que Bergman comete a mesma “leviandade” perpetuada nos filmes mundo afora que usam malas em seus roteiros. A atriz tem que fingir que a mala está pesada, quando todo mundo vê que ela está vazia. Mas como a frágil Liv Ullmann (Eva) vai fingir, se ela está carregando, escada acima, quase correndo, duas malas que devem pesar (se estivessem cheias) cada uma, no mínimo, vinte quilos? Até tu, Bergman?

Leviandade seria nossa, a de nos preocuparmos com tal detalhe, o peso das malas vazias de Bergman. Mas tal observação pode ter seu sentido. Afinal, a genialidade de Bergman faz das malas uma simbologia única, mostrando a extensão da personalidade de Charlotte, uma mulher do mundo e não uma mulher do lar, atribuindo à filha o papel de carregar o peso das escolhas da mãe. Em Bergman nada é de graça, mesmo que sejam duas lindas malas vazias.

Ingrid Bergman, magnífica; Liv Ullmann, magnífica; Lena Nyman, magnífica. Não precisamos de mais nenhum outro adjetivo para alçar estas três estrelas a um dos momentos mágicos da história do cinema. Lógico que nesta vida nada é absoluto, nem mesmo a empolgação dos adjetivos. E tampouco a empolgação do espectador ao ver, em magnífica fotografia, a sucessão de cenas icônicas, dentre as quais ressaltamos duas, e que traduzem à perfeição uma das características mais fortes da filmografia de Bergman. Sua rigorosa preparação de atores.

Primeiro, a cena, logo no início, quando Charlotte fica sabendo da presença da filha Helena na casa da filha Eva. Contrariada, Charlotte — eu tenho outra opção, pergunta ela — concorda em ver a filha doente. O enquadramento em close expressivamente ruborizado das três, cada uma com suas sensações e vibrações interiores, é preciso e chocante. Interminável. Ali está presente toda essa mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição nas relações mãe/filha. Ali estão presentes as provocações que só a arte parece conseguir desvendar. Ali está presente o fantástico fotógrafo Sven Nykvist que, a partir de 1953, passou a ser o inseparável diretor de fotografia dos filmes de Bergman — é considerado, por muitos, um dos grandes fotógrafos da história do cinema. Ali está presente enfim o resumo artístico da genialidade de Bergman.

A segunda cena é a do piano, quando a filha e depois a mãe tocam o Prelúdio n. 2 de Chopin. Se dizem que cinema é close, e é no close onde tudo acontece, é onde a alma sai do limbo e se transforma em assombração, então é preciso assistir a esta cena e ver como o poder da mãe esmaga impiedosamente a tentativa de a filha ser ela mesma. Não há espaço para a filha no mundo. Para onde a filha vai, para onde a filha se vira, para onde a filha olha, lá está a presença invisível da mãe, pronta para roubar-lhe o sentido do existir. Esta é a terrível cena do piano.

Diante do que se disse acima, vamos pinçar, rapidamente, apenas uma assombração. O eterno embate dos filhos em achar que os pais vão se ajustar a eles, às suas necessidades afetivas e de autoestima. E o eterno embate dos pais em criar expectativas em relação a seus filhos, sem ao menos perguntar a esses filhos se realmente concordam com tais expectativas. E se estão dispostos a cumpri-las. As fantasias paternas anulam o humano nos filhos, assim como a frustrada ansiedade dos filhos em relação ao amor dos pais gera dores intermináveis. Sonata de Outono, neste aspecto, se transforma num grito de alerta.

Em suma. O filme coloca uma questão moderna para a mulher. A mulher profissional bem sucedida que, para conquistar e manter o sucesso, tem que se separar do lar e se distanciar dos filhos e marido. Foi o que aconteceu com Charlotte? Ou Charlotte é apenas o modelo inevitável da mãe que transfere suas cicatrizes de mulher para a sua filha indefesa? Quando se trata de relação mãe-filha, para onde se olha, ouvem-se muitas perguntas e nenhuma resposta. Ah, sim! Podemos ter uma resposta para a pergunta que segue. Quem vem primeiro, a mãe ou a filha? Pode-se responder, mas a resposta nada explicará.

 

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