Forrest Gump
COMO É BOM OUVIR UMA BOA HISTÓRIA!
Há filmes que podemos eleger como nossos fiéis companheiros de cabeceira. Vão estar ali, à nossa disposição, para aqueles momentos em que estamos inquietos, nostálgicos ou chateados com alguma contrariedade. Ou apenas buscando uma diversão segura. Prazerosa. Hoje, com a tecnologia, temos esta facilidade de trazermos qualquer filme para dentro da nossa casa, e melhor, junto à cabeceira da nossa cama. E um deles, candidato a ser colocado na pilha dos filmes preferidos, é o singelo e emocionante FORREST GUMP (142’), direção de Robert Zemeckis, EUA (1994). É deitarmos a cabeça no travesseiro e viajarmos nas fantásticas histórias de um ser que não é um ser, mas que, por alguma estranha razão, parece tão real, esse Forrest, que podia ser nosso tio, irmão ou cunhado. E não importa sua pouca inteligência. Mesmo que ela esteja abaixo da linha do que se chama de normalidade cognitiva, sua bondade sem limites, sua crença no amor como fonte primária de vida, e sua sujeição aos princípios que regem a engrenagem do acaso como fonte de liberdade, enfim, sua altivez humana nos impede que sintamos pena ou vontade de rir de uma personagem tão frágil e tão deslocada. E tão Tom Hanks!
Sim, Tom ganhou apenas um Oscar, o de melhor ator. Nem se ganhasse dez, a Academia jamais conseguiria dar a Tom Hanks os aplausos que ele merece. O Forrest Gump criado por ele é destas poucas oportunidades que temos de confundir ficção com realidade. E isto se deve a um simples fato. Tom Hanks recheou sua personagem de um humanismo tão profundo que ele conseguiu sintetizar em Forrest tudo aquilo que gostaríamos de ser. Seres livres, libertos do egoísmo, essa doença moderna que nos condena, desde cedo, à perda do sentido da nossa essência humana. Forrest Gump seja, talvez, o nosso elo perdido.
Forrest Gump é um menino que nasceu com limitações cognitivas, que cresce à sombra do amparo materno. E este amparo se traduz na lucidez com que a mãe insere seu filho no mundo. Ela o vigia e ao mesmo tempo o liberta. Ela o orienta com informações básicas, desprezando os rapapés morais e sociais com que os pais costumam encher os ouvidos de seus filhos, até transformá-los em indivíduos inseguros. Não é o que acontece com Forrest. Forrest Gump é construído para o mundo, e esta concepção é o caldo narrativo do filme, quando vamos presenciando o homem Forrest tomar parte ativa dos momentos históricos mais importantes das décadas de 1960, 1970 e 1980. Não é para menos. Com suas fantásticas experiências, afinal participou até da Guerra do Vietnã, Forrest, sentado no banco da praça, à espera do ônibus que o levará a seu destino definitivo, transforma-se num exímio e delicioso contador de histórias. E o que é mais deslumbrante. Contador de suas próprias histórias.
Se esta colagem perfeita entre Forrest Gump e os grandes acontecimentos da história da segunda metade do século XX é o grande achado do filme, que, aliás, utiliza fartamente da ironia para ridicularizar o modo de vida americano, nada faria sentido, nem mesmo as ironias, se não percebêssemos nos movimentos de Forrest uma motivação extremamente particular. Ele é movido por seu profundo afeto por sua amiga de infância, Jenny, uma menina com uma história familiar conturbada, e que passa a ser o único ser humano, longe da mãe, que efetivamente aceita e compreende Forrest. Pena que Jenny é a escolhida, dentro do seu espectro psicológico instável, para representar aquela época de agitações culturais, políticas e sociais que marcaram a história americana e mundial. Com seu destino trágico traçado, o máximo que Jenny conseguirá, já no final da sua vida, é dar a Forrest o que ele mais desejava. O beijo, o abraço, o sexo e, por fim, o filho, o que nos prova que só o afeto dá consentimento à vida para ser ela mesma.
Vale a pena falarmos um pouco da importância de um bom roteiro para o sucesso de um filme. Entendemos que o cinema respira através do roteiro. Sonoplastia, fotografia, luz, figurino, locações, enfim, são elementos. E muito importantes. Mas um roteiro asfixiante incomoda. Um roteiro pretensioso, mas confuso, frustra. Um roteiro sem rumo chateia. Agora, um roteiro ágil, canibal, que derrama baldes de emoções pelos poros, que consegue dar à dor humana a oportunidade de se redimir pela inteligência dramática, este roteiro se chama Forrest Gump. Baseado no livro homônimo de Winston Groom, o roteiro de Eric Roth oferece tudo aquilo que se espera de um filme. Agilidade com diversão, profundidade com pensamento, ousadia com originalidade. O que nós queremos, afinal, é que nos contem, com competência, uma boa história.
Tantas e outras coisas haveria ainda que se falar do filme. O ritmo, a graça, a fábula, a vida feita de luzes e acasos. Mas vamos nos ater a um ponto. À ironia filosófica do filme. Temos como exemplo uma das falas de Forrest. “Eu corria pra onde eu estava indo e não achava que isso fosse me levar para algum lugar”. O que é isto senão um soco na idéia dos que acham que nascemos para ser alguma coisa? Que só seremos felizes se formos funcionais? Se inseridos num ritmo? Por que é que temos que ser “alguém”? Já não nascemos sendo? Ao questionar esta necessidade de sermos, Forrest Gump nos paralisa. Que é quando nos damos conta de que procuramos tudo, menos a nós mesmos.
Enfim, o que marca o filme, na sua essência, é ser ele uma alegoria da dor. Forrest Gump não seria o que ele foi não fosse sua mãe (Sally Field). Ela representa a lucidez da dor de ter o filho que tem, “lento”, a ponto de se prostituir com o diretor da escola para colocar o filho numa sala de aula de alunos “normais”. Esta atitude nos lembra o famoso executivo da General Eletric, Jack Welch, que, gago, em criança, teve sua autoestima protegida pela mãe quando esta lhe dizia que ele era gago porque seu raciocínio era tão rápido que a língua não dava conta de acompanhar. Forrest Gump foi encontrar a beleza humana da mãe na beleza destrutiva da amiga de infância, a Jenny (Robin Wright), amor de vida inteira e mãe de seu filho. Com a morte de Jenny, Forrest Gump mandou o trator derrubar a velha casa — “tão velha quanto o Alabama” — onde a amiga vivera, palco dos piores abusos que uma criança podia sofrer. Ele, nas suas limitações cognitivas, talvez não percebesse o que havia acontecido dentro daquela casa, mas ele bem sabia, pelas reações de Jenny, que ali era um celeiro de dor. E que precisava ser varrido da face da terra.
Encerramos com a última dor. Ao saber de Jenny que aquele menino era seu filho, veio à mente de Forrest a primeira pergunta. Ele é inteligente? Era. E muito! Acho que todos nós, após assistirmos ao filme, teríamos gostado da idéia de termos sido filhos de Forrest. Pelo menos, na esteira dos nossos preconceitos, teríamos a oportunidade de destruir dentro de nós a ideia sagrada de que temos que ser seres essencialmente superiores. Esta é a ideia “burra”, a de que, se não somos superiores, não somos seres.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.
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