Ao Mestre Com Carinho
O AFETO COMO MÉTODO DE ENSINO
AO MESTRE COM CARINHO (105’), roteiro e direção de James Clavell, Reino Unido (1967), é um filme tão bem-feito que nos dá a impressão de que ele já nasceu pronto. Ou foi realizado sem esforço. Lógico, sabemos que não é bem assim. Produzir filmes exige esforços artísticos e técnicos imensuráveis. Ademais, Ao Mestre com Carinho, baseado em livro homônimo de Edward Ricardo Braithwaite, publicado em 1959, traz uma temática moderna, sensível e explosiva. Questões socioeconômicas misturadas com racismo. Violências domésticas produzindo carências básicas, como a ausência de afeto e de orientação. Portanto, uma temática perigosa, em que há muito o que dizer e o que mostrar. E aqui reside toda a sinceridade do filme. A câmera nos leva direto, sem pudor, para dentro da sala de aula de uma escola da periferia de Londres, em um bairro operário do East End, apinhada de jovens perdidos, agressivos e infantilizados. Jovens que precisam de alguém que lhes mostre o rumo. E tem que ser rápido, porque alguns deles beiram já a delinquência.
O que fica evidenciado, logo nas primeiras cenas, é que qualquer professor, mesmo o mais experiente, pensaria mil vezes antes de entrar por aquela porta e encarar a turminha. O último não aguentou. E a escola acaba de contratar um novo professor. Inexperiente. Um engenheiro elétrico desempregado. Negro. Nascido na Guiana Inglesa e tentando a vida em plena Londres dos anos 1960. Então, professor… vai encarar?
Mark Thackeray (Sidney Poitier) é, sim, um engenheiro desempregado que, após ter tantos currículos recusados, não vê alternativa senão aceitar o emprego de professor em uma escola de periferia. Mesmo sendo aconselhado por seus futuros colegas professores a recusar o cargo, e mesmo depois do frustrante primeiro dia de aula, com fartas evidências de desrespeito, rejeição e racismo, Mark decide encarar o desafio. E o faz não só por estar desempregado, mas também por sua identificação imediata com a história daqueles jovens abandonados pelo sistema educacional londrino. Reside aqui a força moral e filosófica que explica sua decisão. Mark conhece muito bem o que se passa ali, atrás daquelas carteiras.
O filme trata com sensibilidade dos problemas de um grupo específico de jovens sedentos por alguém que lhes ensine os modelos elementares de convivência social. Nada de bombástico. É preciso apenas ensinar aos rapazes que se deve tratar uma mulher de senhorita e não de vadia. Que se deve dizer “com licença” quando entra, “bom dia” quando encontra. Sentar-se de modo correto à carteira, necessariamente tendo os pés presos ao chão. Enfim, corrigir comportamentos desajustados de jovens que trazem para a sala de aula a falta de ensinamentos básicos que famílias desestruturadas não conseguem oferecer a seus filhos.
A ausência desses ensinamentos leva naturalmente a um estado de selvageria. Que pode nos chocar, mas que é a realidade de muitas escolas, inclusive dentro de nossas fronteiras. Verdade é que estes jovens estavam apenas à espera de um mestre que os tratasse com carinho. Alguém que os conduzisse, com mãos firmes, para a vida adulta. E eis que, por obra do destino, adentra a sala um charmoso e carismático Sidney Poitier!
James Clavell tira do livro autobiográfico de Braithwaite um roteiro enxuto e preciso. Que beira o didático. E consegue levar o espectador ao limite da impaciência, a ponto de nos sentirmos tão desamparados quanto o professor. Podemos vê-lo parado diante dos alunos, sem saber o que fazer. Na verdade, o nervosismo começa antes, ainda no corredor, quando o professor, ele próprio tenso, encaminha-se para a sala de aula. Cresce a expectativa. O que vai acontecer? Qual a próxima provocação? Livros derrubados no chão? Tampas de carteiras largadas com estrondo? Pernas para o alto? Agressões verbais? Ironias? O pé da mesa cerrado, levando nosso professor quase ao chão? E ele ali, à frente, olhando a tudo, atônito.
Este é o melhor momento do filme. Quando nos perguntamos: será que o professor vai gritar? Vai esmurrar a mesa? Partir para o confronto físico? Não. Mark Thackeray simplesmente faz o que tem que fazer. Foge às provocações. Não morde a isca. Ele sabe que os conflitos não nascem na sala de aula. Eles vêm de fora, dos lares, das ruas. Afrontar a selvageria seria lutar contra moinhos de vento. Principalmente quando os conflitos de cada um se juntam num grande acordo orquestrado por Denham (Christian Roberts), o líder da arruaça. Conflitos unidos jamais serão vencidos! A não ser que a serenidade, a firmeza e a argúcia consigam nocauteá-los. E o mestre nocauteia. Um a um. Na individualidade, não no coletivo. Lúcido, Mark Thackeray sabe que o caminho da autoridade se constrói pelo respeito, jamais pelo confronto.
Eis o resultado: se não há o embate, o conflito perde seu alvo de ataque. Ele terá que se voltar contra si mesmo. É a lógica. Previsível, aliás. E foi o que aconteceu. O mestre, com sua postura neutra, de não confronto, criou o vácuo. O espaço onde cada aluno agora poderia olhar para si mesmo. Neutralizados os conflitos, as dores começaram a se manifestar. Nesse contexto, a figura paterna é a que surge com mais intensidade, provavelmente já num processo de identificação com aquele homem de gestos e olhares inabaláveis, de presença forte e jeito meigo, trazendo dentro de si uma amadurecida sensibilidade social, justamente do que os alunos precisavam.
O mestre simboliza a lei imposta pelo afeto, não pela pancada. E aqui o filme começa a fazer lentamente a manobra em direção à conscientização da realidade desajustada em que aqueles jovens estavam inseridos. E esta manobra em direção aos bons ventos se dá quando Mark Thackeray finalmente entende o que está acontecendo. Num golpe de mestre, pega a pilha de livros sobre a mesa e joga tudo na lata do lixo. Isso mesmo. E pergunta para os surpresos alunos sobre o que eles querem conversar. Sexo? Casamento? Relações? Família? Menstruação? Às favas com o ensino formal!
Apesar do encantamento, da rendição, do alívio, vale lembrar que a resistência não se quebra totalmente. Nem poderia, sob pena de o filme perder fôlego. A tensão gerada pelo confronto inicial persistirá até o fim, agora isolada na figura do líder da arruaça, aquele mesmo, Denham. E o anticlímax acontece na última cena, antes do desfecho, quando Denham desafia o mestre para uma luta de boxe. Uma situação interessante, quase subliminar. E totalmente necessária. O filme precisava, sim, de um confronto físico, mesmo que a escola, sabiamente, tivesse por norma jamais o utilizar.
Sidney Poitier empresta a Mark Thackeray seu charme, seu olhar, seu gesto gentil e denso, e, aos poucos, já não sabemos quem é o Mark e quem é o Sidney. A simbiose, do ponto de vista artisticamente humano, se concretiza. O filme inglês fez tanto sucesso nos Estados Unidos, em 1967, que a Columbia Pictures promoveu uma pesquisa para saber a razão por que tanta gente ia ao cinema para ver Ao Mestre com Carinho. A resposta foi quase unânime. Por causa de Sidney Poitier. Haveria alguma outra razão pra se ir ao cinema? Provavelmente sim, afinal, o filme é ótimo. Mas temos que admitir. Sidney Poitier é o filme.
Em suma. Assistam a O Mestre com Carinho para verem Sidney Poitier. Mas não só por isso. Aproveitem para entender porque o cinema, para ser pura diversão, tem que oferecer charme e esbanjar inteligência. Mesmo tratando de uma temática tão complexa quanto o delicado corpo social radiografado dentro de uma simples sala de aula. E é aqui, dentro da sala de aula, que o filme edifica a sua grandeza. A escola não precisa substituir a família. Nem deveria. Mas também não pode virar as costas para o que acontece dentro de seus muros, um caldeirão fervilhante de demandas e carências que precisam ser atendidas. Portanto, a escola tem que se preparar, sim, para acolher seus alunos. Afinal, não é toda sala de aula que terá um Mark Thackeray.
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