Nise – No Coração Da Loucura
UMA LUTA DE GLÓRIAS ETERNAS
NISE – NO CORAÇÃO DA LOUCURA (106’), direção de Roberto Berliner, Brasil (2016), roteiro baseado no livro Nise, Arqueóloga dos Mares, de Bernardo Horta, traz não a biografia da grande psiquiatra brasileira Nise da Silveira e sim apenas um recorte de vida desta grande mulher, com suas lutas para fazer valer suas ideias na defesa do tratamento humanizado da loucura, no Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. No entanto, esse recorte é mais que o suficiente para apreendermos a exuberante personalidade de Nise, uma mulher que chegou ao Rio para desafiar um sistema totalmente dominado pela figura masculina no cenário da medicina, e, em particular, da psiquiatria. Portanto, estamos falando de uma mulher pioneira. E o filme traz exatamente esta sensação. A de que sempre vamos precisar de atitudes visionárias para quebrar paradigmas a que a grande maioria das pessoas estão presas, sem questionar, sem analisar os resultados, sem querer inovar. Mas como revolucionar? Revolucionar o quê, quando sabemos que tratar a loucura é mergulhar na escuridão? Nise da Silveira, ao mergulhar na escuridão dos seus pacientes, espertamente levou consigo uma lanterna mágica chamada arte. E aqui está o pulo do gato, que o filme aborda em cenas magistrais, num ritmo narrativo ao mesmo tempo suave e pungente. O que vamos ver é uma declaração de amor ao ser humano.
Nise da Silveira, alagoana de Maceió, nascida em 1905, e falecida em 1999, foi a única mulher na turma de formandos em medicina da Universidade da Bahia, em 1926, num total de 157 homens. Esta informação é apenas uma pequena amostra do caráter desbravador desta mulher que revolucionou a psiquiatria brasileira, indo contra os métodos violentos utilizados nos hospitais psiquiátricos para tratamento de esquizofrênicos. Ela preferiu acessar os doentes mentais por meio das artes plásticas, pintura e escultura, a ponto de as belas obras de seus pacientes esquizofrênicos terem dado início à criação do Museu das Imagens do Inconsciente. É pouco?
O filme começa no momento em que Nise da Silveira retoma as suas atividades no Centro Psiquiátrico, após ter passado alguns anos na prisão. Sim, Nise esteve presa por conta de questões ideológicas anticomunistas, tal qual fora Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas e Memórias do Cárcere, e de quem Nise viria a se tornar companheira de prisão. Readmitida ao Centro, e sem chances de impor suas ideias em um ambiente masculino agressivo, sobrou-lhe uma ala abandonada e com pouca relevância na rotina dos tratamentos psiquiátricos. Estamos falando da ala da Terapia Ocupacional, método este que viria, nas próximas décadas, e em função dos sucessos obtidos por Nise, a ter um papel relevante no tratamento de doentes mentais. A partir do instante em que Nise entra naquela sala suja e malcuidada, começa sua fabulosa trajetória de experimentos e observações de seus pacientes na construção do afeto por meio da pintura e da escultura, além de uma outra alternativa terapêutica surpreendente, o uso da presença dos cachorros como depositários desse afeto.
Mas o sucesso traria a inveja, e os inquestionáveis resultados obtidos por Nise seriam combatidos, de todas as formas, pelos ferozes defensores dos métodos tradicionais de tratamento, como os terríveis choques elétricos e as funestas lobotomias, tão bem retratados — e denunciados — no belo filme Um Estranho no Ninho. Por sorte de Nise, e de todo o seu trabalho, a defesa entusiasmada dos quadros e esculturas por parte do famoso crítico de arte da época, Mário Pedrosa, transformou-se numa grande aliada, possibilitando levar este sucesso para fora dos muros do Centro Psiquiátrico de Engenho de Dentro. Estava eternizado, assim, nas obras de seus pacientes, o grande ser humano que foi Nise da Silveira.
Eternizada também por Glória Pires, que conseguiu compor, com competência, a mulher segura, jovial e determinada que tinha sido Nise da Silveira. Nenhuma dúvida a respeito do que a personagem pensava e queria. E esta precisão de construção de perfis se estende a todo o elenco, cujas loucuras, desenhadas com rigor gestual, nos convencem e nos comovem. Uma nota particular para a concepção de personagem e desempenho de Augusto Madeira, o Lima, enfermeiro brucutu, mesquinho e impaciente, mas que vai sendo modelado dentro da proposta humanista da psiquiatra.
A história das grandes mulheres brasileiras tem em Nise um dos seus pilares. E a força desta mulher vem do que ela nos ensinou. É nossa obrigação enxergar o humano na sua vasta escuridão. E dar a ele um pouco de luz. Luz de Nise da Silveira.
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