Janis Little Girl Blue
A ETERNA MENINA
JANIS LITTLE GIRL BLUE (104’), direção de Amy Berg, EUA (2016), é um documentário sobre a vida e curta trajetória artística da sempre menina Janis Joplin. Um furacão. Um sentir a vida intensamente, que ela levava para os palcos de um jeito peculiar, seu, único. Arrebatador. Uma voz que surge do improvável numa menina de Port Arthur, Texas, que caminhou pelo blues até o rock, indo e vindo, como se caminha numa praia ensolarada, já ao entardecer. Um relâmpago, que quando se transformou em trovão, morreu, de overdose, aos 27 anos, em 4 de outubro de 1970.
Sempre quando assistimos a um documentário, ou lemos biografias, invariavelmente perguntamos se tudo foi dito e mostrado sobre o biografado. Há documentários que parecem nos satisfazer plenamente. Exemplo recente e maravilhoso é o Sal da Terra, sobre a fotografia e vida de Sebastião Salgado. Outro exemplo é a Amy. Podemos dizer, ao assistir ao documentário Amy Winehouse: poxa, essa é a Amy! Mas Janis Little Girl Blue nos traz outra sensação. A de que algo não foi dito. Ou podia ser melhor dito.
O filme sobre Janis Joplin se restringe a apenas alguns pilares testemunhais. Meia dúzia de entrevistados que entram e saem o tempo todo. Um lugar de destaque para os componentes da antiga banda. E outro para os irmãos, que nos deixam a impressão de que não querem falar tudo. E assim o documentário vai traçando a personalidade de Janis e a trajetória musical da cantora, transitando entre o tardio e fulminante sucesso, a partir de Monterrey, o uso descontrolado de drogas e, por fim, sua relação com a família e com os seus sonhos, o suficiente, e aqui o documentário se basta, para nos provar por que a vida e obra dessa menina repercutem, na mesma intensidade, até hoje.
Apesar de relatar os constantes bullyings sofridos em sua adolescência, de esboçar o conservadorismo americano e o ultraconservadorismo texano, de onde ela veio, o documentário podia ir mais fundo numa questão crucial da vida de Janis Joplin. Estamos falando da rejeição, que a moldou e depois viria a abalar sua estrutura psicológica cada vez mais frágil à medida que ascendia ao sucesso. Rejeição ao seu jeito de ser, e depois a rejeição ao seu sucesso. Rejeição da mãe, da família, da sociedade texana, nesta ordem. Pena que o filme recuou diante de tema tão doloroso e tão destrutivo. O que nos leva a afirmar, e esta é nossa impressão, que a vida real às vezes tem extrema dificuldade de caber em um documentário.
Aos amantes da visceralidade musical de Janis Joplin, e de seu estilo de vida, e também aos amantes em geral, fãs de outros artistas, cabe colocar uma observação. O modo criativo de vida tem seu preço quando ele vem interferir no curso normal do cotidiano de uma pessoa. Estamos aqui falando do artista que se consome em um intenso processo criativo, mas a máxima cabe em qualquer pessoa que se propõe, com unhas e dentes, a empreender algo na vida.
Vale lembrar que o grande público consome o que já está pronto. Ele não toma conhecimento do sofrido processo de entrega do artista, com suas dúvidas a respeito da própria arte e de como ela será recebida. Há um processo de dor e ansiedade intenso nesse processo. Que pode levá-lo ao esgotamento emocional. E a corroer sua autoestima. A ponto de entrar em um processo de autodestruição e de esvaziamento existencial. Neste sentido, atravessar a soleira da porta e se entregar aos vícios na busca do que parece ser impossível encontrar na arte é apenas uma questão de oportunidade. Portanto, em maior ou menor grau, devemos aos grandes artistas a coragem de se perderem em troca de nos oferecer sua obra. E Janis Joplin é um exemplo clássico desse perigoso imbróglio entre arte e vivência pessoal.
Em suma. A arte exige o exercício pleno da vida. Como qualquer outra atividade humana a que nos entregamos. E ao nos entregarmos, estaremos doando não só nossas habilidades, mas também nossos demônios. Mas diferente dos ofícios baseados no conhecimento e na técnica, portanto, nas habilidades, o artista infelizmente precisa da companhia dos seus demônios para sobreviver no seu ofício.
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