Roberto Gerin

Resenha Pastoral Americana, por Roberto Gerin

O PESADELO AMERICANO

O filme PASTORAL AMERICANA (126’), EUA (2016), saiu da exuberância de uma obra literária de mesmo título, escrita pelo consagrado autor americano Philip Roth, e publicada em 1997. No ano seguinte, o autor levaria o prêmio Pulitzer por este romance. A direção do filme fica por conta de Ewan McGregor, que também protagoniza Seymor Levov, a personagem dissecada como o símbolo de uma América que oferece o sonho de riqueza para todos, indistintamente. Seymor é o bom sujeito que chega ao ápice do sucesso pessoal e empresarial, notabilizando-se como o representante do ideário norte-americano do homem “que se faz por si só”. E para tornar sua proposta ainda mais instigante, Philip Roth coloca sua personagem no ponto máximo de tensão — a tumultuada década de 1960.

Pastoral Americana é uma ironia que se espalha pela vida de Seymor Levov como um veneno a ser sorvido lentamente, até levá-lo à destruição.

É uma década de mudanças profundas, não só para a sociedade norte-americana, mas também para o resto do mundo. Mas foi lá nos Estados Unidos que o impacto cultural se fez sentir com mais intensidade. Questionamentos sobre a idealização da família perfeita como pilar para a construção da riqueza da nação se fez ouvir de todos os lados. Os filhos levavam esses questionamentos para dentro das próprias famílias. Os tempos agora eram outros — para a política, para a velha moral e para o capitalismo que já não dava conta de atender a todo mundo. Outros agentes capitalistas, principalmente os países asiáticos, passaram a abocanhar parte da riqueza norte-americana, derramando seus produtos baratos em mercados antes privativos dos Estados Unidos.

Pastoral Americana é uma ironia que se espalha pela vida de Seymor Levov como um veneno a ser sorvido lentamente, até levá-lo à destruição. Imigrante judeu da terceira geração, recebido de braços abertos por esta América generosa em oferecer oportunidades, vê agora, através de sua filha Merry, a quarta geração, serem pulverizadas as suas crenças nacionalistas, sobre as quais havia construído os seus sonhos. O filme de Ewan McGregor luta desesperadamente para acompanhar as quase quinhentas páginas do romance, e se não o faz a passos firmes, cabe-lhe o mérito de levar para a tela uma narrativa instigante, necessária para compreender como tudo o que se idealiza será entregue à implacável voracidade da História.

Afinal, produzir riqueza é o que exige a América!

O filme Pastoral Americana começa com a quadragésima quinta reunião dos antigos alunos da escola secundária de Newark, Nova Jersey. O livro, assim como o filme, apresenta o narrador como testemunha de parte dos fatos a serem narrados sobre a vida de Seymor. No entanto, a parte principal da história é desconhecida pelo narrador, um escritor por profissão. Para se colocar a par dos acontecimentos, ele vai precisar de seu amigo de classe, Jerry Levov (Rupert Evans), presente à reunião e irmão mais novo de Seymor, recém-falecido. Escritor famoso, Nathan Zuckerman (David Strathairn) tem interesse em dissecar a história do Sueco (apelido de Seymor), seu ídolo esportivo da infância.

O grande Sueco, o jovem atleta que dominou vários esportes estudantis na Nova Jersey, cuja fama poderia levá-lo aos campos do esporte profissional, preferiu renunciar a esta natural trajetória para se dedicar aos negócios da família, a fábrica de luvas criada pelo pai e em franca expansão. Afinal, produzir riqueza é o que exige a América! Logo revela ser um ótimo empresário, o que faz do Sueco a imagem perfeita vendida pela iconoclastia do sonho do sucesso garantido em terras ianques. Só que este modelo — do sonho realizável — chega a seu esgotamento.

O filme Pastoral Americana escolheu a linearidade, fugindo à diluída complexidade da trama do romance.

O roteirista de Pastoral Americana é bastante fiel às passagens que geram ação e aos diálogos narrativos da obra literária. Aliás, dentro do seu estilo vibrante e caracterizado pela simplicidade das frases curtas e rítmicas, Philip Roth também se destaca nos diálogos, uma qualidade rara para romances, cujos espaçamentos dramáticos sempre dificultam o diálogo tenso, de caráter teatral.

Diria que a estrutura narrativa do romance, que despreza a cronologia em favor da interposição de realidades paralelas e ao mesmo tempo imprescindíveis à compreensão psicológica das personagens, incita no leitor a curiosidade (e a impaciência) para chegar logo ao final do livro, para ter diante de si o painel completo da trama. Numa feliz opção, o filme escolheu a linearidade, fugindo à diluída complexidade da trama, portanto, de riscos desnecessários.

Coube ao roteirista John Romano a habilidade de compor uma narrativa cronologicamente simples e cativante.

Ao optar pela linearidade, podemos observar o malabarismo do roteirista em pinçar cada fato dentro do romance de quase 500 páginas e ordená-los numa sequência dramática que coopte o interesse do espectador e o insira — apesar dos limites — nas problemáticas trazidas por Philip Roth.

Para ficar em um exemplo, tomemos uma das cenas iniciais do filme, em que assistimos ao jovem apaixonado judeu Seymor Levov levar a namorada irlandesa católica Dawn (Jennifer Connelly) para ver o pai Lou Levov (Peter Riegert), e dele obter o consentimento do namoro e futuro casamento. Esta cena, básica para a compreensão de muitos dos conflitos que permeiam o filme, corresponde, no romance (Cia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo), a uma das últimas cenas, cujo ponto máximo é o vibrante diálogo entre Lou Levov e Dawn, entre as páginas 442 e 452. Coube, portanto, ao roteirista John Romano a habilidade de percorrer trama tão labiríntica para compor sua narrativa cronologicamente simples e cativante.

Pastoral Americana vem colocar a nu a mentira do sonho alcançável.

Como estratégia de síntese narrativa, o filme se prenderá tão somente ao núcleo dramático do romance — o dilema familiar de Seymor Levov —, passando ao largo das intenções sociopolíticas de Philip Roth, cuja ficção é apenas um pretexto para o autor discutir, com total conhecimento dos fatos históricos, temas que lhe são caros. Desnuda o engodo capitalista americano, quando se sabe que esta mesma América cobra até a última gota de sangue dos que acreditaram num sonho que para a maioria será inalcançável. Em troca da desilusão, é oferecido aos desiludidos um bom salário, desde que se escravizem numa linha de produção alucinante.

A contestadora filha, acometida de gagueira, Merry Seymor (Dakota Fanning), criação espetacular da falha genealógica familiar, será a agente dessa ruptura. Ela embarca em atos terroristas ao explodir a mercearia (com morte) do pacato lugar onde moravam. A explosão, gestada dentro da casa dos Levov, é o doloroso ponto da triste realidade que se anuncia.

Para a Sra. Hamlin, os Levov estão condenados à infelicidade.

Numa década de intensos movimentos sociais, de lutas por direitos civis dos negros, o segregacionismo, os assassinatos políticos (John F. Kennedy, Martin Luther King, Robert Kennedy), e a desastrosa Guerra do Vietnã, Pastoral Americana vem colocar a nu a mentira do sonho alcançável. E o Sueco, o protagonista, acompanha, indefeso, essa trajetória de horrores que desembocará na decomposição familiar. É o anúncio do fim de uma era.

A cena fatídica, que prenuncia a desconstrução do ideal de família feliz, está na fala da senhora Penny Hamlin (Samantha Mathis), quando Seymor e Dawn vão visitá-la para oferecer as condolências pela morte do marido, provocada pela bomba colocada na mercearia da família pela adorada filha do casal, Merry Levov. A fala da Sra. Hamlin expõe a lógica titubeante do conceito moralista de felicidade e infelicidade. Ela não julga o casal cuja filha aparentemente desfez sua família. Não! A família dela não foi desfeita, porque ela e os filhos, a despeito da morte do marido e pai, continuam intactos e perpetuarão a luta pelo ideal de felicidade, diferente da outra família, a dos Levov, a despeito de todos continuarem vivos, algo foi destruído pela ação malévola da filha. Para a Sra. Hamlin, os Levov estão condenados à infelicidade.

Dentro do sonho perfeito, o que foi que deu errado?

O que move Seymor é o componente culpa. A eterna culpa que surge quando os pais se deparam com os desvios morais do filho. É a velha pergunta. O que é que eu fiz de errado? A busca pelo erro é um dos movimentos essenciais do protagonista, infelizmente minimizado pelo filme, que não buscou explorar certas consequências psicológicas, quando — dando um exemplo — a filha Merry, aos onzes anos, pede ao pai que ele a beije “como ele beija a mamãe”. Philip Roth faz o pai beijar a filha na boca, mesmo que seja um beijo com conotação de inocência. O roteiro omite esse fato importante, construtivo do perfil conflituoso de constante automutilação psicológica por parte de Seymor. Dentro do sonho perfeito, o que foi que deu errado? É o que a América passou a se perguntar nos anos 1960. O beijo, cercado de sua forjada insignificância, entra na balança moral da culpa.

As mesmas questões valem para a senhora Dawn Levov, que da pobreza ascendeu à riqueza, não por méritos próprios, mas por fatores superficiais que compõem o velho sonho americano: a beleza (anglo-saxônica e irlandesa) como elemento essencial para enfatizar o ideal de família perfeita. Era o que precisava o bem-sucedido Seymor. Arrematar também o belo, colocando-o na vitrine familiar, para ser admirado. Dawn, a miss Nova Jersey, sem estrutura para suportar os contratempos, é obrigada a se internar em um sanatório, deparando-se com a triste percepção de que a princesa enlouqueceu.

Pastoral Americana simboliza o que há de melhor na produção literária de Philip Roth. E o filme não se intimidou diante de tal grandeza artística.

Não é nenhum demérito para o filme a afirmação de que ele não alcançou a magnitude artística do livro. Primeiro, porque isso raramente acontece com transposições de obras literárias para as telas. Segundo, no caso específico da obra de Philip Roth, o autor não estava apenas interessado em narrar uma “história fictícia”. Preocupava-o também elevá-la a um patamar de discussões bem mais amplo, trazendo questões históricas que viessem fundamentar a narrativa literária de Pastoral Americana. Na dificuldade de aumentar a duração do filme, para nele caber tais aprofundamentos, coube ao diretor ater-se ao núcleo narrativo central, pincelando-o, na medida do possível, com cores históricas. As inserções de imagens da época foi um dos recursos felizes para dar um ar documental ao filme, aproximando-o, mesmo que timidamente, da narrativa de Philip Roth. Portanto, se Pastoral Americana simboliza o que há de melhor na produção literária de Philip Roth, vale ressaltar que o filme não se intimida diante de tamanha grandeza artística.

Em suma. O filme é uma homenagem a esta imensa obra, e um presente para o espectador que queira se introduzir numa realidade urgente que vai além dos compêndios históricos dos Estados Unidos. O filme, de braços dados com o romance, vai ao encontro daquilo que faz parte propriamente da história universal, simbolizada na vida pessoal de Seymor — a vida feita de muitas ilusões e de terríveis desilusões.

 

Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.

 

Deixe seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *