Roberto Gerin

Meu pai

A NATUREZA NÃO TRAPACEIA, JAMAIS!

O filme MEU PAI (98’), direção de Florian Zeller, França/Reino Unido (2020), nos remete a uma verdade absoluta. A de que a velhice está à nossa espera. Chegaremos até ela. Ou ela virá até nós, tanto faz. Este retrato de realidade nos é apresentado com a crueza das situações cotidianas, maximizadas pela pungente interpretação de Anthony Hopkins. Do alto dos seus 83 anos, o ator sabe do que está falando. É a espantosa percepção de que Anthony (o nome da personagem coincide com o do ator) está perdendo, pouco a pouco, o viço temporário da vida. Sabendo da impossibilidade de conter os efeitos devastadores da velhice, ele se entrega a um desespero nem sempre silencioso, às vezes cáustico, na tentativa de se manter à tona. Tenta a todo custo evitar o mergulho definitivo. O filme Meu Pai, sem precisar recorrer a grandes piruetas dramáticas, desnuda esta realidade. Os passos titubeantes do homem em direção a sua finitude. E, neste caminho — eis o drama armado pelo roteiro —, a personagem se depara com os sintomas destrutivos da demência senil. Olha à sua volta e não mais reconhece o mundo que está deixando para trás. Não bastasse o maravilhoso roteiro e as atuações memoráveis de Anthony Hopkins e Olívia Colman, temos a direção precisa e criativa de Florian Zeller, jovem dramaturgo francês e diretor iniciante que soube magistralmente trazer para as telas a inevitável dor do envelhecimento.

O filme oferece ao público, logo em seu início, a circunstância dramática que desencadeará a trama. É quando a filha Anne diz ao pai que ela está prestes a se mudar para Paris. Ela precisa acompanhar o namorado recém-conquistado. Eis o ponto de partida e o ponto de tensão. Enquanto o pai decai lentamente na demência senil, momentos em que ele mais necessitará do aporte afetivo dos familiares, sua única filha anuncia que está batendo em retirada. É o anúncio do abandono. Assustado, ele perambula entre delírios e realidades, amparado por uma memória cada vez mais frágil. Ao recusar a ajuda de uma cuidadora, nada mais faz que precipitar o abandono.

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Meu Pai tem que ser entendido como um recorte de vida. Uma condensação de fatos. Tudo transcorre dentro de um limitado espaço de tempo. A continuidade do figurino da filha Anne (a bata azul) define essa curta temporalidade. São menos de dois dias, mas tempo suficiente para expor os assustadores dilemas da personagem. Anthony sobrevive de lapsos de realidade, como será constatado na última e belíssima cena do filme. É o momento em que tudo se explica e tudo se clareia. A comovente trama de um idoso que se percebe sendo retirado lentamente da roda da vida.  Nada mais lhe resta senão resistir ao que é inevitável. Logo ali adiante, ele sabe, tudo será escuridão.

A tradução do título para o português — Meu Pai — parece ter alterado a perspectiva narrativa do filme. O pronome “meu” faz com que o eixo narrativo se desloque artificialmente para a filha Anne. De fato, são muitos os encontros decisivos entre pai e filha, o que, à primeira vista, poderia justificar a tradução. No entanto, vamos perceber que as iniciativas das ações dramáticas estão centradas na personagem pai. É da perspectiva de Anthony que o filme nos mostra a terrível luta pelo controle dos desarranjos mentais do protagonista. É sua batalha contra a demência. O título no original, The Father (O Pai), encaixa-se melhor nessa proposta. Tanto mais que ele é baseado em peça teatral homônima, do próprio diretor, cujo título original é Le Père (O Pai). Estabelece-se, portanto, a voz narrativa a partir das manifestações psíquicas do protagonista. A filha, como outras personagens, é apenas uma projeção mental do narrador-pai.

Ademais, os movimentos de câmera são fundamentais para criar no espectador essa ilusão narrativa. A câmera acompanha, com toques de intimidade, as instabilidades mentais de Anthony. Ela é a narradora onipresente dos acontecimentos. Mas se levarmos em consideração que a câmera nada mais faz do que revelar as ações psíquicas da personagem, vamos entender que passa a ser da personagem a responsabilidade de se mostrar ao espectador. E esta responsabilidade foi tão bem entendida pelo ator Anthony Hopkins, que lhe permitiu alçar-se a altitudes divinas de memorável atuação. Anthony Hopkins nos entregou todas as dores e todas as aflições de Anthony! É por esta razão que entendemos ser inadequada a tradução do título para MEU PAI, em detrimento do título original, O PAI.

Meu Pai nos obriga a nos levantarmos do sofá e a encararmos a realidade que tanto conhecemos e que por antecipação tanto tememos.

Vale ressaltar ainda a destreza com que o diretor manipula a mente confusa de Anthony. Florian Zeller estabelece o interessante jogo de repetições de cenas. No entanto, a cada repetição, a cena se modifica nos detalhes (cenário, figurino, personagens) e nos desfechos (na primeira cena a filha esgana o pai, na mesma cena adiante ela apenas acaricia as faces do pai). Estas alterações provocam instabilidades no espectador. E essa é a proposta. Obrigar o espectador a entrar no jogo manipulativo pela simples necessidade de ter que saber o que é realidade e o que é delírio. Ficamos tentando descobrir o que de fato aconteceu e o que é fruto de confusões mentais. A técnica torna-se eficiente ao engajar o espectador nesta viagem dolorosa, quando nos tornamos coparticipantes da desesperada luta de Anthony em se manter lúcido. Ao final do filme, vamos entender que compartilhamos das dores da personagem, desdobradas em cenas de memórias delirantes.

Resumindo o parágrafo acima. Trata-se a trama de uma disputa feroz entre memória e delírio, em que a memória duvida de si mesma, enquanto os delírios vão se apoderando da cada vez mais frágil racionalidade. Eis a luta humana tentando se preservar na sua essência saudável. O que surge diante dos nossos olhos é o desespero em perceber que a luta está sendo perdida.

Nessa triste jornada, a personagem, na tentativa de se agarrar à realidade, apresenta manifestações obsessivas, como se teimasse em dizer que não está perdendo o controle de si. O relógio é um destes pontos de recorrência. Para não admitir que esquece onde coloca o relógio, culpa alguém de tê-lo roubado. E aí entra o simbolismo. Quem roubou o relógio foi o tempo, que o condenou à velhice.

Por fim, não podemos deixar de aplaudir de pé a inigualável atuação de Anthony Hopkins. Ele nos ofertou generosamente a magnífica figura do ser humano colocado diante de seu inevitável destino. Presenteou-nos com as nossas próprias dores. Como se as tirasse de nós e depois nos devolvesse, uma a uma, recheadas de emoções. Como prêmio, Hopkins leva para casa sua segunda estatueta de Melhor Ator.

Em suma. Meu Pai não é apenas mais um filme que fala da velhice. Este estágio da vida humana já foi retratado muitas vezes ao longo do tempo. Seja na literatura, com Rei Lear, representado pela primeira vez em 1606, seja no cinema, com o filme Amor, em 2013. O que chama a atenção é o toque original. Meu Pai nos obriga a nos levantarmos do sofá e a encararmos a realidade que tanto conhecemos e que por antecipação tanto tememos. Mas não há outra saída. Temos que nos preparar para a velhice. Cuidar do corpo e da alma. Sem truques, sem malabarismos. Infelizmente, a natureza é honesta. A única que não trapaceia, jamais!

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