Roberto Gerin

Resenha Besame Mucho Roberto Gerin

Mário Prata faz parte da geração de dramaturgos que surgiram em fins da década de sessenta, em um momento de forte censura cultural, agravada pelo AI-5, instrumento maior de repressão do regime militar instaurado no Brasil a partir de 1964. Junto com Mário Prata, podemos mencionar outros autores que a partir de então passam a marcar a tumultuada cena dramatúrgica brasileira, entre eles, Lauro César Muniz, Leila Assunção, Consuelo de Castro, Antônio Bivar… Todos bravamente seguiram escrevendo seus textos na opressora década de setenta, atitude esta que viria a ser conhecida como “teatro de resistência”. Desde garoto, Mário Prata já manifestava sua intimidade com a escrita. Uma escrita recheada de humor irreverente, o que acabaria se tornando sua marca de estilo ao longo de sua trajetória literária. E, por curiosidade, não fosse o sucesso da sua primeira peça teatral, O Cordão Umbilical, talvez não existira o dramaturgo Mário Prata. Funcionário do Banco do Brasil, cursando Economia, diante do sucesso, aos vinte e quatro anos, abandona tudo para se dedicar exclusivamente a escrever. Falando de um país em que a literatura não sustenta o artista, eis um ato de coragem, e a certeza na sua vocação de escritor. Para garantir o sustento, foi buscar alternativas de ganho, atuando não só como dramaturgo, mas também como cronista em jornais e periódicos, novelista, em que conheceria logo o sucesso, em 1976, com Estúpido Cupido, da Rede Globo, andou por várias emissoras de televisão e jornais, principalmente em O Estado de São Paulo, consolidando, assim, sua fama como um dos mais versáteis autores nacionais da segunda metade do século XX. É neste percurso vitorioso que surge uma de suas obras basilares, levada aos palcos em 1983, com estrondoso sucesso. Estamos falando de Besame Mucho.

Quando resolveu escrever Besame Mucho, fruto de uma encomenda por parte do grupo Mambembe, à época, de certo modo Mário Prata se vê às voltas com a pergunta que todo autor se faz quando vai iniciar um novo projeto. Sobre o que escrever? Política? Já não era a temática da vez. Afinal, já era o início da década de 1980, o país, sob o governo do presidente Figueiredo, vinha passando por uma gradual distensão política que levaria ao fim da ditadura em 1985, e, por este motivo, as questões políticas, que tanto preocupavam os artistas, já não provocavam tantos ecos. Neste sentido, na busca por novas temáticas, a proposta de Mário Prata para Besame Mucho foi pontual. Como ele mesmo revelaria, procurou trabalhar com outras formas de repressão, e estas repressões ele foi buscá-las dentro do cotidiano da classe média. Religião, sexo, amor, culpa, eis o que agora importava, já que as preocupações políticas não eram mais tão urgentes.

A trama gira em torno da trajetória de vida de dois casais, Xico e Olga, Tuca e Dina, iniciando-se no ano de 1962, o ano da formatura, quando os quatro ainda moravam no interior paulista, em Albuquerque. Este é o momento cronológico de pensarem no que fazer de suas vidas. O ponto de contato entre os casais são os dois, Xico e Tuca, cuja amizade perdura ao longo do tempo. Enquanto Tuca, com Dina, continuam no interior, Xico e Olga se mudam para a cidade de São Paulo. Vão, todos, cuidar da vida. Vão estudar, sonhar, casar, construir suas carreiras profissionais, terem filhos, cada um tentando lidar com suas heranças de culpa, a busca incessante, quase obsessiva, pelo sexo, que parece não se realizar por completo, as crises de criatividade, e, no fim das contas, veem-se tentando salvar seus relacionamentos, esmagados sob o peso do cotidiano. É assim que chegam ao ano de 1982, passando, portanto, por duas décadas de autoritarismo. E chegam com o sentimento de que nada se resolveu, de que tudo parece continuar na mesma. Só que agora é chegado o momento de encararem seus fracassos. Esta é a tragédia que a comédia Besame Mucho oculta.

O ponto final da peça se concluiria pelos desfechos dos dois relacionamentos, no ano de 1982. No entanto, o que seria o fim se torna o começo. Esta é a estrutura concebida por Mário Prata. Narrar a história dos dois casais de trás para frente. É o que ele faz. Com propriedade. A narrativa é dividida em quadros, e cada quadro vai recuando dois anos no tempo, sempre anos pares, portanto, com seu início em 1982, até finalizar, no baile de formatura, em 1962. O antes vai explicando como se transformaram no depois. É o retorno às raízes, como diria Mário Prata, para tentar entender o que de fato aconteceu. Afinal, sabemos, logo no primeiro quadro, quais são os desfechos. Agora, a curiosidade do leitor vai sendo alimentada pelos desdobramentos, em cronologia inversa, das causas.

Mário Prata faz valer suas habilidades de escritor para conduzir o entrecho, usando o humor inteligente e cáustico como arma de estilo. E para dar o sabor cômico e realista, ele vai permeando os diálogos e as situações com cenas picantes, seja pelas falas e atitudes sexualizadas dos dois casais, seja pela saborosa intervenção do casal de contrarregras, quando, a cada passagem de quadro, eles vão trazendo ao conhecimento do público o feroz jogo sexual que acontece, entre os dois, nas coxias. Esta talvez seja a grande sacada que faz de Besame Mucho um texto bastante original. Enquanto as histórias dos casais, como dito, são narradas numa cronologia inversa (fim, meio e começo), o envolvimento sexual do casal de contrarregras é narrado na ordem natural, (começo, meio e fim), o que nos faz entender por que cabe a estes a responsabilidade (e oportunidade) de encerrarem o texto (e o espetáculo).

Mário Prata, com Besame Mucho, um grande sucesso de público, já em 1983, quando de sua primeira montagem, dirigida por Roberto Bomtempo, que assina também a montagem de 2011, conforme pode se ver na imagem escolhida para ilustrar esta resenha, consegue traduzir, com pontualidade e humor, as desilusões da classe média naqueles fins de ditadura, a mesma classe média que havia ido às ruas, em princípio da década de 1960, pedir a intervenção militar pela salvação da família e da pátria, e que agora, num ciclo cruel, veem-se, vinte anos depois, no mesmo lugar. Eis o resumo histórico da função política da classe média, chancelado nas páginas de Besame Mucho. Agora, após digeridas  as desilusões, é preciso recomeçar. Novamente.

A perspectiva do recomeço é pincelada por Mário Prata no segundo quadro, o de 1980, quando ele faz alusões a esta mesma classe média querendo agora abraçar uma nova ideia política. Esta ideia é representada pelos movimentos dos trabalhadores na década de setenta, que iria desembocar na criação do Partido dos Trabalhadores, que passou a atuar fortemente na política desde então. Eram novos anseios, a esperança da ascensão econômica, o orgulho de ser brasileiro, agora envoltos em outras cores.

No entanto, o que parecia ser o recomeço, passa a ser a antecipação de uma nova realidade política brasileira pós Partido dos Trabalhadores. A classe média, na sua busca por ser um agente decisivo na construção de um país desenvolvido e livre, rebela-se mais uma vez. Portanto, seu dilema, retratado em Besame Mucho, continua. Enquanto a classe média não tiver a noção exata de que um país tem que ter um povo, esta classe irá pular de galho político em galho político, sem conseguir ser agente do seu próprio destino. É preciso ter a noção profunda e cívica de que não há nação sem povo. E o mais importante. A de que povo não pode ter umbigo. Se ficar olhando para o próprio umbigo, nunca contemplará o horizonte, o futuro. Talvez seja isto que a classe média brasileira nunca entendeu. E é por isso que Tuca e Dina precisaram se refugiar na fantasia para conseguirem encontrar sua explosão sexual. Assim como Xico e Olga precisaram se refugiar na mentira para sustentarem suas autoestimas. Atitudes como estas, de avestruz, vão levar, com certeza, e sempre, a um novo e perigoso ciclo político. E mais uma vez a noção de povo se perderá.

 

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