Roberto Gerin

Rastros de Ódio

À PROCURA DO PRÓPRIO TERRITÓRIO

Quando pensamos em filmes de faroeste, vem-nos à mente prateleiras recobertas de teias de aranha. Não é esta a impressão que nos dá? De coisa para ser guardada em sótão? Afinal, quem hoje em dia assiste a esse tipo de filme? A não ser os aficionados? Ou haveria ainda um público disposto a botar a mão na poeira para resgatar do passado os bons faroestes? Mas quais, se pouco ouvimos falar deles? Pois é o que fazemos agora, numa reverência à história dos faroestes. Trazemos para análise um dos clássicos do gênero, frequentador da quase totalidade de listas dos melhores filmes de faroeste de todos os tempos. E é inevitável fazer a pergunta, para assim pormos à prova a nossa tese. Quem já ouviu falar em RASTROS DE ÓDIO (1956), direção de John Ford, produção estadunidense, e que tem no elenco nada mais e nada menos que John Wayne, o ícone dos bangue-bangues? Aliás. Quem já ouviu falar em John Wayne?

Apesar de ser um gênero que há muito saiu de moda, e que teve seu auge lá pelas décadas de 1950 e 1960, não podemos negar que os faroestes ainda arrebatam fãs sedentos por novos lançamentos que, infelizmente, estão cada vez mais raros. Na falta de novos, resta ir em busca dos bons e velhos faroestes. A lista é razoavelmente extensa, afinal, o gênero foi um dos co-fundadores da indústria do cinema. Os estúdios ganharam muito dinheiro com tiroteios e assaltos a bancos e a diligências. Sem falar das sangrentas matanças de índios e dos memoráveis duelos na única rua de longínquas e empoeiradas cidadezinhas do oeste americano. Amparados por ótimos roteiros, estes são os ingredientes que ainda roubam a atenção e a admiração dos espectadores. Nesta corrida pela conquista do Oeste (e do público), Rastros de Ódio surpreende, pois foge às velhas receitas de bolo, com suas narrativas de fácil digestão.

Em meio ao trotar dos cavalos, resta a Ethan encontrar para si um sentido de vida.

Ethan Edwards é um veterano da Guerra Civil Americana acostumado a apertar o gatilho. No entanto, com o fim da guerra, ele se vê sem rumo, sem destino e sem profissão. Após alguns anos, em 1868 ele retorna à casa do irmão, no Texas. O irmão é casado com Martha, por quem Ethan nutre indisfarçado amor. No dia seguinte à sua chegada, os índios Comanches atacam o rancho e assassinam o irmão e a esposa Martha, e raptam as duas filhas do casal. Inicia-se então para Ethan a obcecada busca pelas sobrinhas que, em meio a nevascas, desertos e despenhadeiros, perdura por longos cinco anos. Esta é a trajetória aparentemente simples e até banal do roteiro de Rastros de Ódio, mais conhecido por The Searchers.

No entanto, a banalidade do roteiro, que parece se resumir à procura pela única sobrinha sobrevivente — logo se descobre que a mais velha fora morta pelos índios — é compensada por uma estrutura dramática em que o que importa são as ações psicológicas das personagens. O plano familiar e a convivência cotidiana com aquele mundo hostil e perturbador superam em interesse as conhecidas batalhas por territórios e gado, pilares econômicos que sustentam os que se aventuraram a desbravar o velho oeste. Não que não exista gado roubado, terras incendiadas, solidão em meio à vastidão de um horizonte desabitado. O que se quer discutir aqui, enquanto se procura pela menina, é o conceito do enraizamento, a indisfarçada necessidade de pertencer a um mundo que, se sabe, ainda não é seu. Neste sentido, as constantes ameaças de ataques feitas pelos índios, estes sim os legítimos donos daquelas terras, faz com que a vida permaneça em compasso de espera.

Em meio ao trotar dos cavalos, resta a Ethan encontrar para si um sentido de vida. Desenraizado em uma terra que não é sua, ele sabe que este é seu destino — vagar. Um andarilho com o revólver no coldre, pronto para entrar em ação. Só que agora ele sabe que tem algo decisivo para fazer. Não se trata de ser um homem bom ou um homem mau. Trata-se de combater raivosamente o líder indígena Scar e extirpá-lo da face da terra, para assim trazer a tão sonhada paz para os seus. E, deste modo, poderem iniciar a dura caminhada rumo ao progresso econômico norte-americano.

Em Rastros de Ódio, este é o grande feito. A preservação da família e não do território é que motiva o ódio.

Motivado pelas dores da perda de entes queridos, o que importa para Ethan é se ver no espelho da própria existência. Ethan é apenas um ser humano desprovido de sentidos profundos, jogado no vácuo de uma realidade histórica ainda em formação, na qual ele não encontra seu lugar e pouso. Esta conclusão pode ser verdadeira se nos atentarmos para a última cena do filme. Todos se reencontram, todos estão felizes, as famílias, depois da tragédia, vão recomeçar, agora em outro patamar existencial. Aquele território, após cinco anos de busca, agora lhes pertence. No entanto, Ethan atravessa a soleira da porta e caminha para o nada, tendo à sua frente apenas o horizonte inalcançável.

Em suma. Rastros de Ódio pode não ser o melhor filme da lista dos grandes faroestes. E talvez pode também não ser o melhor filme do icônico diretor de faroestes, John Ford. Afinal, ele traz na bagagem outras obras importantes, com destaque para No Tempo das Diligências, de 1939. Mas o que importa é que John Ford abre caminho para que o gênero vá além dos tiroteios. Cabe aprimorar o desenho das personagens. Cabe lhes dar não só o movimento, mas também os sentimentos e conflitos que trespassam suas veias agitadas pelas incertezas típicas de um mundo em transformação. Neste sentido, Rastros de Ódio desloca a lente para uma realidade mais palpável, longe das ilusões criadas pela violência como fonte de sustentação dramática desse tipo da narrativa. O diretor tem a ousadia de enveredar por caminhos geralmente trilhados por filmes que se preocupam com as manifestações psicológicas das personagens. E em Rastros de Ódio este é o grande feito. A preservação da família e não do território é que motiva o ódio.

 

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