Nêmesis
AS EPIDEMIAS SE REPETEM PORQUE SE PARECEM
Com tudo o que está acontecendo no Brasil e no mundo — a pandemia levando para os lares as dores do luto e da ausência, pessoas angustiadas à espera da vacina —, nada mais didático e acintosamente prazeroso do que ler esta obra magnífica de Philip Roth, NEMÊSIS, 197 pg., TAG, que nos fala da epidemia da pólio em pleno coração econômico dos Estados Unidos, na década de 1940. Ao visitar literaturas que narram situações de pandemias, vamos nos deparar com muitas semelhanças com o que está acontecendo hoje no mundo pandêmico do coronavírus. Soa-nos como uma repetição da natureza. E também neste romance o vírus parece não ter olhos. Não escolher a quem atacar. Em que casa entrar. A quem ceifar. Como seres humanos desiguais que somos, ricos ou pobres, judeus ou cristãos, brancos ou negros, na doença e na morte nos nivelamos, todos.
Ao fazer as malas e partir, Bucky mal sabe que a tragédia está indo com ele, de carona.
E os ingredientes também parece serem os mesmos. A surpresa com o que está acontecendo, seguida de medo e ansiedade, a busca por culpados, o negacionismo diante das evidências, para que tudo então termine em pânico ou descrença. E, lá na frente, nos acenando, a esperança.
Dentre tantas obras que fazem da peste e de epidemias sua temática central, vale ressaltar este livro fenomenal de Philip Roth, Nêmesis, em que o autor narra um dos tantos surtos de poliomielite ocorrido em Newark, sua cidade natal, no verão de 1944, quando ainda não havia vacina, e sequer conheciam como exatamente o contágio se dava. Era conviver com a tragédia em um quarto escuro.
A poliomielite, nossa conhecida, é uma doença destrutiva, que inutiliza membros e até o pulmão, submetendo as vítimas a carregarem as sequelas da doença vida afora. Isto quando não vão a óbito. E do relato do surto de 1944, só nos resta um espanto. Onze anos depois, a vacina da pólio seria criada e o mal praticamente erradicado em boa parte da terra. Pode ter sido tarde para muitos, mas providencial para as gerações futuras.
Este seja talvez o ponto mais asfixiante de Nêmesis. Por onde se olhasse, não havia esperanças, tampouco soluções.
Bucky Cantor é um jovem atleta, professor de educação física, que também cuida do pátio de uma escola, em um dos bairros judeus de Newark. A cena inicial do romance se dá justo no momento em que a pólio chega ao pátio do colégio. Dois dos meninos acabam de morrer. E Bucky Cantor põe em marcha sua angústia, na ânsia de entender o que está acontecendo.
Philip Roth sobrecarrega seu personagem de culpa e dúvidas a respeito de suas atitudes frente à epidemia. Ao receber um convite para trabalhar em outra escola, longe do epicentro da pólio, Bucky é arrastado definitivamente para o abismo moral. Ele aceita o convite, abandona a atual escola em seu momento mais delicado e vai em busca de sossego e proteção contra a ameaça do contágio. E, ao fazer as malas e partir, mal sabe que a tragédia está indo com ele, de carona.
Em suma. Indico este belo romance de Philip Roth, Nêmesis, que com certeza trará para o leitor muitas familiaridades e, mais do que isso, lançará novas luzes sobre o que passamos e sofremos com as ameaças do novo coronavírus. Ademais, ainda seremos obrigados a agradecer à ciência por ser tão ágil e tão competente ao vir, em menos de um ano, em nosso socorro. Este seja talvez o ponto mais asfixiante de Nêmesis. Por onde se olhasse, não havia esperanças, tampouco soluções. Restava a todos esperar o verão passar, para que o vírus da pólio sossegasse. E que viesse encontrar todos vivos no próximo verão. Enquanto formos vivendo, quem sabe nos demos conta de que seja na dor, seja na alegria (dentro e fora da literatura), somos uma única humanidade, com suas vulnerabilidades e suas inesgotáveis esperanças.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.