Roberto Gerin

Resenha Contos da Lua Vaga de Roberto Gerin

O CONTO DA GANÂNCIA

Nesta obra prima de Kenji Mizoguchi, CONTOS DA LUA VAGA (96’), Japão (1953), o diretor japonês tem como proposta central discutir os efeitos destrutivos que a ganância pode causar na vida das pessoas. Quando se fala em ganância, fala-se em dinheiro. Em querer acumular muita riqueza. O mais rápido possível. E não estamos falando do cenário capitalista moderno. A história de Genjuro e Tobei, os dois gananciosos, está inserida no século 17, no interior de um Japão agrário e mergulhado na Guerra Civil. Como diz Genjuro. “A guerra é propícia para se ganhar dinheiro”. Passa a enxergar no comércio a fonte de ganho ilimitado. E a catequese para justificar a ganância sai da boca do protagonista como uma certeza bíblica. Diz ele. “A ambição tem que ser ilimitada como o oceano. Ambição significa ficar rico”. E acrescenta. “O dinheiro é tudo. Sem ele, a vida é dura e toda esperança perece”. Eis então o formato moral em que se encaixa a proposta de Kenji Mizoguchi. Mostrar que “o sucesso sempre tem um preço, que pagamos com sofrimento”. E o sofrimento virá com certeza a seu tempo, o que prova que a vida não é apenas o fluxo de vontades inabaláveis. Temos que estar preparados para os refluxos, que é quando entram em ação as vontades de um destino implacável.

Genjuro e Tobei são casados com duas irmãs e vivem enfiados nos confins de um vilarejo fincado entre montanhas e terras inóspitas. Genjuro é um exímio ceramista, cujo trabalho se sustenta pela sensibilidade artística e segurança técnica. Só que, tomado pela ambição de ganhar muito dinheiro, põe-se a trabalhar desesperadamente para aumentar a produção.

Para muitos, Contos da Lua Vaga pode ser considerado o principal filme de Mizoguchi.

Seu concunhado e ajudante Tobei, a quem caberá um terço dos lucros, tem outra ambição, que vai além da acumulação do dinheiro farto. Prende-se à ideia fixa de se tornar samurai. O dinheiro que ele vai ganhar com o carregamento de cerâmica será destinado, para aborrecimento da esposa, à compra de uma armadura e de uma lança, apetrechos bélicos necessários para se tornar vassalo de um grande samurai. São com estas propostas que os dois partem para a cidade, carregando as cerâmicas em meio aos perigosos caminhos da guerra.

Para muitos, Contos da Lua Vaga pode ser considerado o principal filme de Mizoguchi. Independente de opiniões e classificações, é de fato uma obra monumental. Mesmo tendo o diretor tirado de foco uma das suas temáticas recorrentes, o papel do feminino na implacável sociedade machista japonesa. Não que esta temática não esteja presente. Na trama, a mulher se apresenta como o anteparo dos desajustes masculinos numa sociedade em transformação, em que o homem, fugindo aos valores familiares, se transforma num joguete do destino — leia-se, ganância. Caberá à mulher ser o ponto de equilíbrio, a força que irá resgatar o macho dos seus escombros morais. Como fica claro em Contos da Lua Vaga, Genjuro e Tobei parecem atormentados com a obsessão de refazer os seus destinos.

A simbologia da ganância sem limites vem representada pelo amor inconsequente de Genjuro por Lady Wakasa.

A ganância, portanto, é a protagonista de Contos da Lua Vaga. É o apego à matéria, ao enriquecimento fácil, ao trabalho obsessivo. E a ambição é tão ilimitada, e de certo modo tão natural, que o espectador acaba embarcando nas loucuras de Genjuro e Tobei. Apesar de estarmos falando de um Japão ainda dominado pela estrutura feudal, as transformações econômicas já são visíveis. É o comércio gerando fontes de renda e de prosperidade. E é neste sentido que vem o alerta. A ilusão da prosperidade fácil leva a distorções morais e existenciais que vão cobrar seu alto preço.

E Mizoguchi leva seu intento ao limite quando nos mostra o poder encantatório da ganância. É ela que nos conduz para uma realidade sedutora e perigosa, a deusa que está junto de nós, mas que não nos satisfaz. Porque irreal. Até que a bolha da ilusão estoura e caímos do alto da nossa fantasia em terra árida e pedregosa. É o triste retorno para os braços da realidade. Por sorte, estão lá as mulheres, com seus convites para recomeçarem uma nova vida.

A simbologia da ganância sem limites vem representada pelo amor inconsequente de Genjuro por Lady Wakasa. Ela é o fantasma que vaga pela terra à procura de que algum amante complete sua história. A condição para que o relacionamento se concretize é Genjuro se casar imediatamente com ela. Seria a conquista máxima da vida farta de prazeres e felicidades. Vivida não em terra firme, mas em um paraíso que Genjuro não tem noção de onde possa existir. O encantamento é desfeito pela intervenção da sabedoria de um mestre que vai mostrar a Genjuro o erro que está cometendo ao se entregar às suas ilusões. Desfeita a magia, Genjuro retorna para sua vida comum, na busca silenciosa da sobrevivência cotidiana, material espiritual de que nos alimentamos.

Em suma. Em Contos da Lua Vaga há o espaço para a redenção, para a reformulação, para o feliz recomeço.

Para seu concunhado Tobei, a realidade bate à porta de uma outra maneira. Através do falso heroísmo, portanto da trapaça, ele consegue alçar-se à condição de um venturoso samurai cercado de servos e regalias, bem ao gosto de seus sonhos. Só que, no estilo moralista das grandes descobertas, Tobei é confrontado com sua realidade interior quando, ao parar no meio do caminho para desfrutar das benesses de prostitutas, depara-se com sua mulher (a quem abandonara) entre elas. É o suficiente para retomar a consciência de sua antiga vida, feita de sabores concretos, como o afeto, o amor e o companheirismo. Ele também retorna para sua casa purificado, a salvo da terrível mancha da ganância que o fez se perder momentaneamente em um mundo para ele totalmente estranho e hostil.

Em suma. Em Contos da Lua Vaga há o espaço para a redenção, para a reformulação, para o feliz recomeço. O arco dos personagens os traz para o mesmo lugar, após passarem não por uma transformação, que no final das contas acaba acontecendo, mas por um processo de autoconhecimento através dos erros, dos enganos e das desilusões. Esta passagem os transformará em seres humanos melhores, portanto, sim, transformados. Contos da Lua Vaga nos encanta justamente porque ele nos recoloca no eixo moral da vida. Do qual nunca deveríamos nos afastar.

 

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