Roberto Gerin

REsenha Moby Dick, por Roberto Gerin

OS MONSTROS DOS MARES

Quando MOBY DICK, 593 p., Cosac Naify, foi publicado pela primeira vez, em 1851, Herman Melville (1819-1891) já era um escritor bastante conhecido. No entanto, o calhamaço foi um retumbante fracasso. Obra secular, seminal e portentosa, não conheceu, à época, olhos que enxergassem sua importância literária e histórica. Precisou de décadas, até chegar nos anos 1920, quando Moby Dick foi finalmente colocado, por tardios admiradores, dentre eles William Faulkner, no lugar de destaque da literatura estadunidense e mundial. Desde então, Moby Dick se tornaria uma referência clássica, sendo, inclusive, título de várias produções cinematográficas.

O romance é um feliz encontro de gêneros literários que se misturam e dividem as páginas numa convivência habilidosa, amalgamados em estilos inconfundíveis, às vezes retórico, às vezes poético, cômico, irreverente, teatral, enfim, obra de um autor que domina como ninguém a arte da escrita. Munido de muita pesquisa e de vivência pessoal nos mares, inclusive em embarcações baleeiras, Herman Melville nos convida a navegar por oceanos inóspitos e insondáveis, na busca obsessiva da única baleia a ser caçada, a feroz e assassina cachalote branca Moby Dick. A busca obstinada pela baleia deixa-nos presos à sensação de estarmos participando de uma missão impossível.

Ler Moby Dick se transforma numa experiência única e reveladora.

Em particular, ressaltamos a forte veia descritiva, de domínio minucioso, que permeia toda a narrativa, oscilando entre os profundos conhecimentos do mundo encantado das baleias — participamos de descrições anatômicas precisas —  até a arquitetura naval da embarcação Pequod, um espaço universal ocupado por uma tripulação de culturas variadas, como se ali, a bordo, a Arca de Noé se materializasse numa babel de raças e etnias.

Ishmael é o narrador da colossal aventura. Jovem em crise existencial, reflete em parte a própria existência do autor, que se viu obrigado, aos 13 anos de idade, a ir em busca de sobrevivência. O narrador embarca no navio baleeiro Pequod, a partir da ilha de Nantucket, Massachusetts, sabendo que seu destino está atrelado a algo bem maior, alimentado pela irreal sensação de que seria uma viagem sem volta. E essa sensação é construída com perfeição narrativa pela figura implacável e soberba do estranho capitão do navio, Ahad, cuja única obsessão é caçar e matar a cachalote Moby Dick.

Para o leitor desacostumado aos grandes desafios literários, reservados à leitura dos grandes (e volumosos) clássicos, ler Moby Dick se transforma numa experiência única e reveladora. Os caminhos a serem percorridos são os mais variados e fogem às paisagens comuns de uma narrativa que se atém a núcleos dramáticos precisos e compulsivos, movidos pelas ações e intenções de protagonistas encarregados de levar a trama a seu desfecho. Não que Moby Dick não tenha um núcleo narrativo claro. Pelo contrário. Sua motivação narrativa é claríssima. No entanto, em torno do núcleo gira uma centrífuga de emoções, sensações, esperas e ansiedades de homens que perscrutam os mares vinte e quatro horas por dia, à espera da próxima baleia. Não há sossego, não há descanso.

Em Moby Dick, acompanhamos dois monstros que se movimentam pelos mares em busca um do outro — navio e baleia.

É assim que se explica Moby Dick: ao subir no navio baleeiro Pequod, o capitão Ahad levará sua embarcação aos confins do Pacífico, em busca de baleias a serem abatidas para encherem, com seu precioso óleo, os inúmeros tonéis acomodados no porão do navio. Só que o capitão Ahad traz um outro propósito. Aliás, único. Vingar-se da temida baleia branca Moby Dick, que lhe arrancara a perna, transformando-o em um capitão perneta obrigado a socar o marfim da sua perna postiça nas tábuas sonoras do convés.

Acompanhamos, em deliciosos detalhes, dois monstros que se movimentam pelos mares em busca alucinada um do outro — navio e baleia. É a eterna luta entre o homem e a indomável natureza, tendo agora como palco não planícies e montanhas, nevascas e desertos, mas os longínquos e tormentosos oceanos. A longa narrativa prepara o embate final, prenunciando o trágico para seus destemidos marinheiros. Todos parecem adivinhar o que os espera. Na lida tenaz de seu trabalho cercado de perigoso heroísmo, parecem marionetes impotentes em mudar o futuro que os aguarda. O implacável capitão Ahad constrói para si o herói trágico, cuja obstinação o transforma em um deus impiedoso que traça minuciosamente o destino de seus marinheiros.

Ler Moby Dick é tudo o que um leitor pode ambicionar para si.

A contextualização histórica de Moby Dick vem cercada de infindáveis nuances de cores econômicas e geopolíticas que antevê a ascensão do império econômico norte-americano. Essa percepção, ainda em meados do século XIX, pode nos parecer um tanto vaga, mas não será puro exercício de imaginação admitir a força centrífuga de um Ahad como a simbolização da nascente ambição norte-americana de domínio territorial e influências políticas. O mercado é um leviatã a ser conquistado e dominado. Na expansão, não cabe o medo. O fracasso editorial do romance, quando da sua publicação, pode apenas revelar o ainda incipiente papel que os Estados Unidos viriam a exercer como a mais poderosa nação do século XX. Ao se descobrir como potência, a América descobriria o que lhe deu razão para o seu glorioso destino: Moby Dick.

Em suma. Ler Moby Dick é tudo o que um leitor pode ambicionar para si. É uma viagem em direção a múltiplos gêneros literários, numa miríade de ofertas de conhecimentos e sensações que emprestamos do autor para fazermos nossa própria viagem em um navio baleeiro. Acomodados em um confortável sofá, podemos nos arriscar a lançar o arpão e vermo-nos em seguida sendo arrastados pelo leviatã se debatendo à nossa frente. Será muito agradável corrermos sérios riscos de vida através das páginas de Moby Dick. Só a literatura pode nos proporcionar essa insubstituível experiência.

 

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