Roberto Gerin

Resenha Minha Casa é Onde estou, por Roberto Gerin

OS EFEITOS DO DESENRAIZAMENTO

Antes de falarmos do romance MINHA CASA É ONDE ESTOU, 156 p., Editora Nós, cabe falar um pouco da autora, Igiaba Scego, uma vez que se trata, o romance, de uma obra claramente autobiográfica.

Igiaba Scego é uma escritora italiana, de ascendência somali. Sua família, após a instauração da ditadura militar na Somália, em 1969, é obrigada a abandonar o país. Foram buscar abrigo na antiga metrópole, a Itália, de quem a Somália se tornara independente no início dos anos 1950. Igiaba Scego viria a nascer em solo italiano, natural de Roma, onde seus pais se estabeleceram. Era uma Roma de múltiplas facetas, e a mais visível delas, para Igiaba, eram os indisfarçados preconceitos em relação aos imigrantes africanos. É nesta condição de afro-italiana que a autora tenta se ajustar a um mundo que ela pretende que seja seu, afinal, sua casa é onde ela nasceu e mora, a Itália. E enquanto tenta se fazer italiana, ela traz na pele e na alma uma pátria que ficara para trás, mas da qual não tem como se desvincular. É por esta e outras razões que o romance Minha Casa é Onde Estou se transforma em um cântico a dois mundos, dos quais Igiaba Scego herdou memórias e saudades, agora derramadas em páginas semeadas de dores e alegrias.

Seja para onde formos, a terra onde nascemos nos acompanhará.

À medida que vamos lendo o romance, uma pergunta se faz presente em cada página. Quem, nesse mundo em constante transformação, não teve que abandonar sua terra natal para ir em busca de uma vida melhor? E que, já adaptado em novas terras, não tenha olhado para trás e sentido o vazio de uma existência arrancada de suas raízes?

Os deslocamentos — migração ou imigração — sempre têm uma motivação. Geralmente de ordem econômica, quando se vai em busca de alguma oportunidade profissional que se apresentou. É a satisfação de uma vontade. O cumprimento de um desejo de melhorar de vida. Mas, e para aqueles que são arrancados de sua origem em função de ideologias e guerra civil? Qualquer que seja a motivação, o que fica para trás não será esquecido, tampouco anulado. Seja para onde formos, a terra onde nascemos e sentimos os primeiros sopros de vida nos acompanhará. É esta a mensagem que Igiaba Scego quer nos transmitir com seu romance Minha Casa é Onde Estou: o desenraizamento e suas consequências.

É nesse jogo sem compromissos, estabelecido em Minha casa é onde estou, que Igiaba Scego vai surpreendentemente se descobrir italiana.

O motivo para a autora falar de si e de suas origens vem do seu encontro com o irmão e o primo. Numa brincadeira sem compromissos, caberá a cada um desenhar o mapa de Mogadiscio, a capital da Somália. A proposta é transitar pelas ruas e por lugares afetivos, num jogo de memórias e saudades. Logo se perceberá que cada um dos três tem uma trajetória diferente, uma maneira toda pessoal de se aproximar de seu país de origem, a Somália. É nesse jogo sem compromissos que Igiaba Scego vai surpreendentemente se descobrir italiana.

À medida que a autora vai desenhando o seu mapa, ela começa a perceber que está presa a sua Roma, e que Mogadiscio existe apenas em forma de ecos trazidos pelas histórias que ela vai contando de seus pais, tios e avós, acontecimentos dos quais ela não participa, apenas tem conhecimento. Portanto, é transitando pelas vidas passadas de familiares e parentes que ela vai construindo a própria história. O que não deixa de ser emocionante, já que ela nos transmite, em estilo vibrante, enriquecido por metáforas e muita poesia, além do farto recheio de fatos históricos, toda a construção dolorosa de um desenraizamento forçado.

O leitor, portanto, terá duas razões para ler o romance. A primeira, literária, pois estará diante de uma obra artística única, um labirinto de palavras que vão rasgando as tramas da vida sem que com isso precisemos nos incomodar. E a segunda é que o romance nos coloca em contato com uma realidade cultural que pouco ou nada conhecemos, o que torna essa viagem literária, no tempo e no espaço, tão interessante quanto encantadora.

O romance Minha casa é onde estou revela-se no próprio título.

Os somalis são um povo antigo, eles vieram dos assírios, que ocuparam o lado oriental da África e que hoje aparecem no mapa com o nome de Somália. É uma geografia da qual já ouvimos falar, mas que mal sabemos tratar-se de um repositório de ricas culturas. E esta é uma das funções desse cativante romance. Nos colocar em íntimo contato com esse mundo desconhecido. Sem a existência de Igiaba Scego, a bela Somália, com seus fracassos e encantos, não existiria de forma tão vívida em nossa imaginação.

Em suma. O romance Minha casa é onde estou revela-se no próprio título. Apoiado em um estilo franco, autobiográfico, sem pudores, sem a necessidade de embelezar o passado, deixa-se desbravar nas memórias de um tempo que não ficou para trás, mas que, pelo contrário, está presente nas atitudes emocionais, psicológicas e culturais que se manifestam no corpo da narradora, e que dão à sua alma cidadã uma morada sempre em transição. Como diz Sgiaba Scego. “Sou italiana, mas também não sou. Sou somali, mas também não sou”. E para se consolar, tenta estabelecer seus vínculos de origem. Aceita desenhar para si o seu mapa. Um mapa que não aceita despedida nem chegada, uma vez que, para onde ela for, ele irá consigo.

 

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