Shine
NINGUÉM TEM O DIREITO DE INVADIR NOSSOS SONHOS
O filme SHINE (95’), direção de Scott Hicks, Austrália (1996), chama a atenção para uma verdade cotidiana. A de que o homem não pode ir contra a sua natureza, sob pena de se destruir. E a resiliência será sua arma para superar obstáculos e impor a sua individualidade. Fica-nos a evidência de que, quaisquer que sejam esses obstáculos, eles não são necessariamente intransponíveis. E que, mesmo submetidos a limites, podemos ir além. Podemos transpor. Esse é o protagonista de Shine. Sabe que terá que combater as teimosias emocionais de um pai que o sufoca, que o anula. No entanto, a despeito do pai, ele não se entrega. Pelo contrário: segue em frente, mesmo sabendo que a loucura será sua companheira inseparável.
Shine é mais um filme baseado em história real. Vem recheado de indicações a prêmios, cabendo a Joffrey Rush, com sua magnífica atuação no papel adulto do pianista David Helfgott, levar para casa, na categoria Melhor Ator, as três cobiçadas estatuetas — OSCAR, Globo de Ouro e BAFTA.
“Sim, vamos vencer.”
Estamos falando da biografia do talentoso pianista australiano David Helfgott, emocionalmente escravizado por um pai dominador, Peter Helfgott (Armin Mueller-Stahi), que tinha como única obsessão ver o filho ganhar todos os concursos de piano de que participava. Entretanto, a nociva expectativa paterna impediria que David Helfgott alcançasse naturalmente a perfeição artística, tão exigida aos pianistas. David precisou da ajuda da romancista australiana Katharine Prichard (Googie Withers) para se livrar da destruidora tirania paterna. Katharine levou-o a estudar no consagrado Royal College of Music, em Londres. Com esse importante passo, parecia que a vida de David retomaria seu curso normal. No entanto, não foi o que aconteceu.
À medida que David se submetia aos treinamentos ministrados pelo entusiasmado professor Dr. Cecil Parkes (John Gielgud), os primeiros sintomas de distúrbio mental começaram a se manifestar nele. O extenuante desafio de executar a dificílima peça de Sergei Rachmaninoff, Concerto Nº 3, que levaria David a vencer o tão sonhado concurso, fez piorar seu já frágil estado psíquico, obrigando-o a se internar em um hospital psiquiátrico.
A obsessão por vencer competições de piano — o que interessa é o primeiro lugar, o resto é derrota — moldou o suscetível perfil mental de David. Diante da figura paterna, cujo sonho era ver o filho tocar nos palcos o Concerto Nº 3, de Rachmaninoff, sentia-se um fracassado. É muito sintomático o desenho emocional que se estabeleceu entre os dois. Após mais uma derrota, o pai pergunta para David: “O que vamos fazer agora?”. E o filho responde, perguntando: “Vamos vencer?”. E o pai chancela o contrato emocional com a afirmativa: “Sim, vamos vencer.”.
O que impulsiona a tensão narrativa do filme Shine são as atitudes emocionais doentias do pai, Peter Helfgott.
David deixa Londres e retorna para Adelaide, na Austrália. Após mais algumas internações em hospitais psiquiátricos, e vendo-se amparado por seu casamento com Gillian (Lynn Redgrave) — por quem se apaixona perdidamente —, ele retoma os concertos, sem, contudo, deixar de levar consigo, na vida cotidiana, as sequelas da loucura. Sua genialidade é seu ponto de contato com a normalidade. Angaria junto a seu público ao mesmo tempo admiração e compaixão.
O que impulsiona a tensão narrativa do filme Shine são as atitudes emocionais doentias de Peter Helfgott. Ele mantém o filho sob suas asas com a prédica de que David, caso abandone tudo para ir em busca de seus sonhos, estaria provocando a destruição da família. Nada pode ser alterado no seio familiar. Nada pode fugir ao controle de Peter. Sua possessividade traz aspectos abusivos. Despersonaliza o filho em nome de um ideal vago, conceitos que trouxera do passado, mas cujos ecos, no presente, soam terríveis. Ao impedir o filho de ir, aos 14 anos, para os Estados Unidos estudar piano, acaba acelerando a destruição familiar, uma vez que, na sequência, David abandona definitivamente a família, levando o pai a deserdá-lo. A ideia de que nada pode se mover para que nada mude parece absurda, mas foi a partir dela que Peter construiu a loucura do filho.
A música tornar-se-ia o elo de lucidez que manteria o pianista em contado com a realidade.
A obsessão pela família como entidade indestrutível está ligada, no pai judeu, à perda de sua família nos campos de concentração. Por isso, a família não pode se separar. E a individualidade tem que estar subordinada ao ideal dessa família inseparável. Aqui reside toda a contradição. Ao artista, é exigido que ele vá para o mundo, que ele se desprenda de suas origens e crie vida própria. Ao sufocar David em nome da ideia absoluta de família, Peter inseminou no filho a loucura que o aprisionou, para sempre, na semiescuridão. A música tornar-se-ia o elo de lucidez que manteria o pianista em contado com a realidade.
Shine foi acusado de adulterar fragorosamente a realidade. Em particular, no que tange a dois quesitos. Primeiro, ao papel abusivo de Peter, exagerado pelo roteiro, que culpabiliza o pai pela doença do filho. Para uma das filhas, Peter sempre se mostrou um bom marido e um bom pai. A segunda questão diz respeito às habilidades técnicas do pianista David. Segundo críticos, houve também exageros. Dadas as precárias condições psíquicas do David Helfgott real, não era possível performances tão brilhantes quantas as exibidas nas telas. Portanto, fica para o espectador o dilema de saber onde termina a verdade e onde começam as especulações ficcionais.
Shine cumpre seu papel de nos alertar que somos indivíduos dotados de natureza própria, peculiar e única.
Ainda referente à questão do parágrafo anterior, fica a sugestão ao espectador de assistir ao documentário OLÁ, SOU O DAVID! (53’), realizado pela Cosima Lange (2015), que esmiúça a poderosa vida do pianista David Helfgott.
Ademais, Shine mantém relações estreitas, em sua temática, com o poderoso filme Uma Mente Brilhante. É como se eles se ajudassem e se complementassem, tamanhas as semelhanças quanto às perspectivas humanas que ambos nos oferecem.
Em suma, Shine cumpre seu papel de nos alertar que somos indivíduos dotados de natureza própria, peculiar e única. E que temos que estar vigilantes para que essa peculiaridade não seja destruída por vontades e idiossincrasias alheias. Nosso eu, composto de personalidade e talentos, é nosso bem maior, posto que as energias construtivas estão dentro de nós, para nos impulsionar rumo às nossas realizações. E, para nos protegermos, sempre é aconselhável construirmos nossos próprios refúgios. No caso de David Helfgott, infelizmente, seu refúgio foi a sua loucura. Mas, estejam certos: há refúgios bem menos traumáticos. Um deles é mantermos intacta a nossa autoestima. Ao assim fazer, estaremos nos protegendo, uma vez que ninguém terá o direito de invadir nossos sonhos.
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