Roberto Gerin

Resenha O Avesso da Pele, por Roberto Gerin

A METÁFORA DA DOR

O premiado romance de Jeferson Tenório, autor carioca radicado em Porto Alegre, O AVESSO DA PELE, 189 p., Ed. Companhia das Letras, como se revela no próprio título, traz à luz o debate entre a aparência e a essência. E o autor coloca o dedo na ferida. O que somos além da pele que nos veste? Para ele, a cor da pele parece dizer mais sobre nós do que nossas qualidades intrínsecas, que nos definem e nos transformou no sujeito que somos. Sermos inteligentes, de personalidade firme, caráter reto, comportamentos atrelados a atributos morais indevassáveis, não são estas as características que colocam o homem acima de qualquer suspeita. Infelizmente, há atributos outros que antecedem estas virtudes humanas. No caso da mulher e do homem preto, estas virtudes perdem valor no triste mercado do racismo.

O romance se transforma em um grito de dor quando desfila por suas páginas vidas comuns de indivíduos negros inseridos em um cotidiano socioeconômico tão igual quanto o cotidiano das outras pigmentações de pele. O negro dirige o carro, o negro é professor, o negro mora em um apartamento, o negro consome restaurantes, degusta vinhos, o negro é, portanto, um ser social e economicamente visível. Só que esta visibilidade é anulada quando ele apresenta ao mundo a sua cor.

Em O Avesso da Pele, as pequenas histórias, trazidas pelo narrador, são oferendas de desilusões e desencontros.

Após a morte recente do pai, e como forma de expiar a dor da perda, Pedro se põe a relembrar fatos que trazem de volta a figura paterna, pessoa que marcou a sua vida e a quem está ligado pelas mesmas angústias provocadas pela presença cotidiana do racismo. As angústias e as revoltas do pai serão as angústias e revoltas do filho, fazendo cumprir mais um giro desse círculo vicioso sem fim. Dentro da estrutura narrativa, portanto, o que dá início, meio e fim à trama é a figura paterna.

À medida que o narrador vai trazendo o pai para o centro do palco, outras vidas vão se achegando, silenciosamente. Suas pequenas histórias são oferendas de desilusões e desencontros. É assim que Jeferson Tenório vai orquestrando uma dança frenética de memórias e sentimentos resgatados. E neste processo quase catártico de visitar o passado de seus pais e avós, Pedro vai se encontrando consigo mesmo. Com a cor da sua pele.

Jovem ainda, Pedro vai se fortalecendo nas dores, vai se preparando para refazer os passos do pai. A tomada de consciência da sua condição social de pessoa preta será o escudo que o protegerá das ameaças futuras. Quer se fazer crer que a luta contra o racismo não é uma luta vã. Tampouco solitária. Portanto, ao colocar o pai no centro da cena, como o protagonista das dores geradas pelo racismo, a dor da perda acaba sendo um pretexto para outras discussões mais urgentes. E mais dolorosas.

Este é o sumo existencial que empurra a dolorosa trama de O Avesso da Pele para dentro de nossas consciências.

Um dos traços que mais define o perfil do filho é sua coragem em encarar a própria realidade. Uma realidade — eis a consciência — que vai além das questões pessoais. É preciso se colocar como um ser vivente disposto a encarar a si, posto que, ao se encarar, estará tomando uma atitude política em relação às questões do racismo que impregnam os desastrosos comportamentos sociais.

Ao refazer os caminhos biográficos do pai, o jovem Pedro, em seu processo de amadurecimento, vai se reposicionando frente à luta que ele sabe terá que combater cotidianamente. São lutas que se travam dentro de si, ao redor de si e diante dos noticiários das tevês. Este é o sumo existencial que empurra a dolorosa trama de O Avesso da Pele para dentro de nossas consciências. Conhecer corajosamente o passado é se preparar para a luta. E essa é exatamente a postura central da personagem.

É nesse caminho de memórias e edificações de realidades esquecidas, e na necessidade de compreender como sua vida se estruturou em cima desses embates cotidianos, um cotidiano que o ameaça por causa da cor da sua pele, que Pedro, o narrador onisciente, vai tentando entender a sua origem. E para que esta compreensão se faça, ele precisa ir além da pele, mergulhar no seu avesso, em busca de sua verdadeira identidade, que definirá seu papel de cidadão. O primeiro passo é não se sentir acuado.

São capítulos soltos, à mercê das memórias e dos impulsos, aparentemente incompletos.

O escritor Jeferson Tenório habilmente abandona a ideia de espaço e tempo para mergulhar livremente dentro de outros tempos e espaços inventados por ele como tática para trazer à tona o avesso das realidades vividas. Ele fatia histórias para compor um painel aparentemente desconexo, obrigando o leitor a se distanciar para construir o todo. Nada parece se encaixar. São capítulos soltos, à mercê das memórias e dos impulsos, aparentemente incompletos. No entanto, o leitor sabe que não está sendo abandonado pelo autor e que será premiado lá na frente com as surpresas do desfecho.

Para aprofundar a colocação acima, vamos nos valer do exemplo de uma das tantas histórias que compõem o romance. Trazemos a tumultuada relação da mãe de Pedro com seu primeiro namorado, e depois marido, Vitinho. Intrinsecamente, a pequena história é escrita de forma linear, com o começo, o meio e o desfecho. No entanto, o autor a divide em quatro partes e as distribui ao longo de uma das sessões do romance, O AVESSO, como sendo os capítulos 5, 8, 11 e 13, dos 14 que formam esta parte do livro. Percebe-se que a sequência é interrompida com a intercalação de outros capítulos que, neste caso, remetem à história de seus pais, ao casamento deles, ao nascimento de Pedro, à relação de Pedro com o pai, enfim, esse é o eficiente jogo de estruturas narrativas interpostas, muito bem utilizado pelo autor premiado com o Jabuti de 2021.

Ao percorrer O Avesso da Pele, somos atirados em um espaço de aparente inverossimilhança.

Esse ir e vir no tempo e espaço é fundamental para que percebamos aos poucos para onde o autor está querendo nos levar. A vida é o conjunto de realidades soltas que se atropelam e que são necessárias para sentirmos intensamente o nosso viver. E Jeferson Tenório nos envolve e nos aquece nessa terrível malha de dores e sonhos, nos livrando da perigosa monotonia da narrativa linear.

Por outro lado, quando o autor chega ao ponto central da sua proposta, que é preparar o desfecho para o ponto trágico do racismo, ele abandona a técnica do fatiamento narrativo para falar diretamente das abordagens preconceituosas dos policiais a seu pai. São sete breves narrativas relatadas na sessão DE VOLTA A SÃO PETERSBURGO, em seu capítulo 4. Veja que em um único capítulo ele enumera sete situações de abordagens, sufocando o leitor com uma sequência de dolorosas (e perversas) injustiças — praticadas pelo Estado. Com certeza Jeferson Tenório quis imprimir à narrativa uma maior efetividade dramática, alimentando cuidadosamente as tensões que nos encaminharão para o desfecho.

Em O Avesso da Pele, o pai é o pretexto para que o narrador invente histórias alheias.

Seguindo nas nossas considerações, destacamos que o autor se vale de uma outra artimanha para alçar o drama à sua necessária eficácia. Habilmente Jeferson Tenório manipula as vozes que compõem a sinfonia narrativa. Temos aqui duas vozes que se imbricam, se alternam e se provocam. E essa interminável esgrimia de vozes provoca o efeito esperado. Obriga o leitor, de modo inconsciente, a mergulhar nos incômodos da narrativa. E reside aqui, a nosso ver, o ponto alto que traz à obra a sua magnitude artística.

Quando o autor se propõe, numa atitude de monólogo, se dirigir a um alvo, no caso o pai, ele estabelece com o leitor um contrato emocional titubeante. Somos atirados em um espaço de aparente inverossimilhança. O pai é o pretexto para que o narrador invente histórias alheias. O narrador-filho, para não se comprometer, sai do eu (primeira pessoa) e se dirige para o tu (segunda pessoa), o que nos faz não só duvidar das realidades que nos são apresentadas, como nos leva, a partir do que vivenciamos na leitura, a criar nossas próprias realidades.

Ao nos jogar na irrealidade do real, até a morte do pai pode se apresentar incompreensível.

Quando o narrador-filho entra na intimidade dos pais, seja de caráter sexual, emocional, sentimental e mesmo factual (de fato o que está sendo contado aconteceu?), causa-nos a sensação de incompletude, de algo não vivido e não realizado, o que torna a narrativa cruel e exponencialmente dolorida. No entanto, o autor corre um certo risco, porque, ao nos jogar nessa irrealidade do real, até a morte do pai pode se apresentar incompreensível. Sorte que sua habilidade de artista faz-nos passar ao largo desta equivocada percepção.

Por outro lado, quando o narrador retorna para a primeira pessoa, quando fala de si e de suas vivências, o sol lá fora se abre intenso, tirando-nos da penumbra causada por nuvens tormentosas. É um jogo terrível e extremamente eficiente do ponto de vista da cooptação das sensibilidades do leitor. Não há maior comodidade para o leitor do que conhecer a história na primeira pessoa, o narrador-testemunha dos fatos, o que nos dá a feliz sensação de que não estamos sendo ludibriados pela visão parcial de um narrador onipresente.

O romance O Avesso da Pele chega aonde ele precisa chegar. Sem disfarces, sem recursos mirabolantes de estilo, sem falsas metáforas.

Finalizando, ao entrar na história passada do pai como um intruso que, para lidar com a dor da perda, “inventa” esse pai, as dores na verdade ficam suspensas, sem pouso e sem consolo. E aqui reside a grande força dramática do romance. A morte do pai é simplesmente inexplicável porque provocada por um cancro social, e é este cancro que Jeferson Tenório quer supurar diante de nossos olhos assustados. Assustados porque percebemos que fazemos parte dessa sociedade, portanto, do cancro que ajudamos a alimentar: o racismo.

Em suma. O romance chega aonde ele precisa chegar. Sem disfarces, sem recursos mirabolantes de estilo, sem falsas metáforas. E se quiser falar de uma metáfora, ela está no título. De uma contundência inominável porque antecipa as dores. O avesso da pele é o único lugar plausível onde podemos viver com decência, com naturalidade, com harmonia, posto ser o único lugar onde o ser humano realmente se iguala e se une na sua essência.

 

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