Roberto Gerin

Resenha de Os Supridores, por Roberto Gerin

NÃO EXISTE SONHO PERFEITO

Uma das boas surpresas do mercado literário atual é o romance de estreia de José Falero, OS SUPRIDORES, 301 pg., Ed. TODAVIA. O romance é vigoroso, tem uma escrita portentosa. O autor maneja as palavras com tamanha naturalidade, como se elas fossem o sangue que corre em suas veias — jorram aos borbotões, que o leitor acaba sendo tragado pela fluidez escorregadia de narrativa tão saborosa quanto bem arquitetada. Lógico, para atender a essa sede de palavras escritas, Falero compôs personagens tagarelas. A língua precisando se apressar para acompanhar o ritmo mental do protagonista Pedro. Ele não cabe em si de tantas ideias transformadas em sonhos, ideias que escapolem de sua mente fértil como pipocas pulando de uma panela sem tampa. Pedro é, antes de tudo, o sujeito que move a história: essa foi a missão imposta a ele pelo autor.

O título Os Supridores vem da função que os amigos Pedro e Marques exercem em um supermercado. Sim, são aquelas pessoas que repõem produtos nas prateleiras. No entanto, ao longo da narrativa, esse conceito se expandirá, dando outra conotação à palavra “supridor”. Referimo-nos aos protagonistas que passam a suprir a periferia com papelotes de maconha.

São cinco companheiros de jornada que transitam pelas páginas nervosas de Os Supridores.

Podemos falar, sim, de protagonistas, no plural, já que a estrutura do romance acolhe outros agentes que, unidos pela amizade, percorrem a mesma trajetória narrativa. São cinco companheiros de jornada que transitam pelas páginas nervosas de Os Supridores. Quando uma ação inimiga atinge um, estará atingindo a todos. Essa corresponsabilidade de colorir a história com as mesmas emoções é que faz de Os Supridores um hino à lealdade.

Pedro e Marques, enquanto repõem os produtos nas prateleiras, vão tecendo seus sonhos e pesadelos. Rapazes pobres da periferia, cujos sonhos se concentram numa única possibilidade futura: ter dinheiro, muito dinheiro, para poderem viver bem. No entanto, simples empregados de supermercado, as chances de amealhar riqueza são bastante remotas. Estão destinados, como os avós e os pais, a continuarem pobres, tendo que se contentar com um salário que mal lhes oferece sobrevivência digna.

Só que agora as coisas serão diferentes. É contravenção séria.

Esse impasse social e, lógico, econômico, é o mote que fará girar a roda da fábula. E tudo acontecerá porque Pedro nem pensa em se submeter ao legado de pobreza herdado de seus antepassados. Arquiteta um plano: vender maconha na periferia. Em meio às gôndolas, não só convida o amigo Marques a fazer parte do negócio, como vai expondo suas ideias, reforçando a certeza de que vender drogas é o único ponto de fuga para saírem da miséria.

Mas que fique bem claro. São trabalhadores que vão se aventurar, de forma honesta, no mundo do crime. Já experimentam o sabor da transgressão ao roubarem guloseimas dos depósitos do supermercado para satisfazerem seus desejos de consumo. Só que, agora, as coisas serão diferentes. É contravenção séria. Mas segura, promete Pedro a Marques. Afinal, Pedro não é bobo, conhece os riscos, que são, por ele, engenhosamente calculados.

Em Os Supridores, Pedro é o homem de confiança do autor.

O autor apresenta a feliz solução ao construir a premissa que embasará a estrutura dramática e que servirá para justificar os passos duvidosos a serem dados por dois jovens pobres e honestos, que até então cresceram à margem da bandidagem, a despeito de toparem com ela pelas ruas dos bairros onde moram. Pedro percebe que os traficantes se voltaram para as drogas pesadas, muito mais lucrativas, abandonando o comércio da maconha. Portanto, a maconha é uma demanda reprimida, à espera de ser explorada.

O sucesso da empreitada se deve às ações positivas de Pedro. Ele é o homem de confiança do autor. O autor precisa da capacidade de articulação de Pedro para levar a cabo a sua história. Nenhum contratempo poderá perturbar o encaminhamento do feliz enredo, mesmo que estejam envolvidos numa atividade tão ferozmente competitiva quanto a venda de drogas.

Falero conhece muito bem as vozes da periferia de Porto Alegre.

Ao assim projetar a trajetória segura para suas cinco personagens, Falero cumpre seu desejo de preservar a integridade moral deles. Pedro espertamente evita invadir os territórios alheios. Apenas pede permissão para entrar. E a permissão é dada, posto que o negócio de Pedro e sua gangue não competirá com os lucrativos negócios dos barões do tráfico.

Um dos aspectos que mais chama a atenção do leitor é a habilidade com que José Falero trabalha a oralidade em suas personagens. Consegue aproximá-las do meio em que vivem. Aliás, Falero conhece muito bem as vozes da periferia de Porto Alegre. Ele oferece ao leitor a sensação de estar convivendo com pessoas pinçadas da realidade — portanto, construídas em carne e osso. É o fabuloso mundo do escritor, fotografado por meio da fala.

Vale lembrar que a norma culta só é utilizada nos momentos em que o autor se distancia de suas personagens para fazer avançar a trama.

Em Os Supridores, ao estabelecer regras equitativas que privilegiam o convívio harmonioso, o autor cria um mundo de emoções e sentimentos perigosamente irreal.

Muito habilidoso, Pedro nos é (também) apresentado como uma figura intelectualmente antenada, a ponto de discorrer sobre as teorias marxistas com grande intimidade. Acredita que todos somos iguais, e que, para viver bem e em harmonia, as riquezas produzidas terão que ser igualmente divididas — independentemente da maior ou menor capacidade de cada um em produzi-las. É a partir dessas idiossincrasias que Pedro estrutura a convivência da gangue e, por conseguinte, a distribuição equitativa dos ganhos pela venda da maconha.

Entretanto, ao estabelecer regras equitativas que privilegiam o convívio harmonioso, o autor cria um mundo de emoções e sentimentos perigosamente irreal. Ao compor para suas personagens um quadro social baseado em convivências idealizadas, mesmo em se tratando de um negócio ferozmente competitivo, posto que envolve o fluxo de muito dinheiro, José Falero impede que aflore nas dinâmicas das relações cotidianas entre os membros do grupo os perigosos sentimentos da cobiça, da ganância, do ciúme e, em última instância, do poder. O que fazer com tais sentimentos? Como neutralizá-los?

O romance Os Supridores surpreende pela sua agilidade em cooptar o leitor sem que ele tenha tempo de resistir.

Falero opta por jogar o conflito para além do grupo, quando a turma começa a ser ameaçada por outra gangue, perigosa e violenta. Ao unir o grupo em torno da defesa do seu território, essa coesão evitará que conflitos internos se manifestem. E, para impedir a eclosão desses conflitos, Falero joga os bons companheiros na fogueira da violência. É quando o autor contará mais uma vez com a força mental idiossincrática de Pedro, seu comparsa no encaminhamento do desfecho da narrativa. A rígida flexibilidade do arco da personagem Pedro facilitará a solução, dando a ela, talvez, um alcance menor, mas não menos impactante.

Em suma. Estamos diante de mais um autor com imensa capacidade criativa e técnica para se consolidar como expoente da nossa literatura. O romance Os Supridores surpreende pela sua agilidade em cooptar o leitor sem que ele tenha tempo de resistir. Essa é uma das qualidades necessárias para nos engajarmos nas grandes estórias. Sentirmo-nos participantes delas. No caso do romance de Falero, depois de intensa participação, sairemos da história com uma amarga certeza: a de que não existem sonhos perfeitos.

 

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