Roberto Gerin

Resenha No Tempo das Diligências, por Roberto Gerin

Pequena amostragem social do velho Oeste

A diligência é um dos símbolos da conquista do Velho Oeste; portanto, sua presença é mais que necessária em filmes de faroeste. Trata-se de uma carroça sobre quatro rodas (de ferro), protegida por um toldo inspirado nas carruagens europeias, sendo puxada por duas ou três parelhas de cavalos. As diligências percorrem o cinema desde que os primeiros faroestes começaram a circular pelas telas. E, como já revela o título do filme em questão, NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, (97’), direção de John Ford, EUA (1939), a carroça é a protagonista da narrativa. É ela que transitará pelo velho Arizona, transportando nove passageiros rumo a destino perigoso e incerto.

No Tempo das Diligências está interessado em dissecar o microcosmo social de um pequeno grupo pessoas.

No Tempo das Diligências acabou se transformando num dos grandes clássicos do cinema. E apresenta atributos para tanto. O principal deles é tratar-se de um filme que ultrapassa as fronteiras estéticas do tradicional bangue-bangue. Há conflitos, há tiroteios, há perseguições, há índios morrendo; no entanto, o foco do filme não são as peripécias. No Tempo das Diligências está interessado em dissecar o microcosmo de um pequeno grupo social de nove pessoas que vão ter que conviver, por alguns dias, uns com os outros, em total clima de tensões. A maneira como lidarão com as incertezas denunciará a personalidade e o caráter de cada um.

Nesse sentido, o roteiro se arma pelo contraponto entre o perigo externo — representado pelo iminente ataque dos apaches, conduzido por seu grande líder, o irredutível Gerônimo — e os perigos internos, que são as imprevisíveis reações de cada membro do grupo. Essa é a grandeza de No Tempo das Diligências. Levar para o Velho Oeste os dilemas e as encrencas sociais perpetradas na figura peculiar de cada ser humano. São os males da civilização (leia-se Leste) adentrando furiosamente as terras ainda inóspitas do recém-conquistado Oeste.

É a amostragem social de nove pessoas dentro de uma diligência que possibilitará a análise dos comportamentos que regem a convivência entre humanos.

Antes de mais nada, é bom saber que a diligência é um transporte público. Portanto, percorre distâncias pré-determinadas, entre um ponto de partida e um ponto de chegada. Nos primórdios, era sempre uma viagem de risco. E é destes riscos que o roteiro se apropria para armar seus gatilhos dramáticos.

Eis a primeira condição: os que se propuseram a viajar estavam cientes dos perigos a que se submeteriam. E, para convencer os passageiros a embarcar na aventura, o roteiro oferece aos viajantes a possibilidade real de a diligência ser escoltada — até certo ponto do caminho — por uma companhia do Exército. Essa circunstância favorável — a proteção do Exército — fará com que duas mulheres e sete homens iniciem a viagem.

No Tempo das Diligências disseca o medo dos passageiros de sofrerem ataques dos índios que nada mais querem senão defender suas terras. No entanto, o filme realmente se ocupa é dos viajantes. A amostragem social de nove pessoas dentro de uma apertada diligência possibilitará a análise dos comportamentos (bons ou nem tanto) que regem a convivência entre humanos. A exposição de caracteres começa pelas duas mulheres, que serão o alvo principal das atenções dos sete homens. Uma delas é casada e está indo ao encontro do esposo capitão; a outra é prostituta, expulsa da cidade pelas mulheres de bem.

No Tempo das Diligências nos oferece a oportunidade de enxergarmos as pessoas desvinculadas de sua carcaça social cotidiana.

Como já era de se prever, a configuração dos comportamentos masculinos se estruturará a partir da presença das duas mulheres. O médico alcoólatra e o fora da lei Ringo Kid se posicionarão do lado da prostituta. Os demais, com maior ou menor indiferença, protegerão a senhora de bem. Deste convívio conflituoso, aflorarão preconceitos e compaixões, reforçando a ideia de que a radiografia moral das duas mulheres definirá os comportamentos, edificados também em bases morais, dos homens.

No espectro do machismo, no entanto, os homens transitam pelas transgressões sem grandes riscos. Ao macho, cabe apenas preservar a honra — esta, sim, o bem maior, pela qual vale a pena lutar. E cuja ação protetora estará sempre ligada à existência do feminino. E é assim que as mulheres são definidas dentro do grupo: como frágeis e carentes de proteção, mas capazes de desestabilizar e de destruir.

A exposição de seres díspares, desvinculados da carcaça social cotidiana, acaba nos levando a conhecer figuras interessantes, a começar pelo médico alcoólatra, que nos oferece os melhores momentos de hilaridade. A cena maior é quando ele é obrigado a usar de artifícios para se curar da bebedeira e estar sóbrio para realizar um parto urgente. Sua alma cidadã se desdobra entre a fragilidade do vício e a ação heroica do obstetra.

No Tempo das Diligências foge dos clichês para ocupar seu merecido lugar como um dos clássicos do gênero faroeste.

Não poderia faltar o xerife, figura imprescindível. Apodera-se da intransigência da lei para proteger a diligência e seus ocupantes. Deste modo, usa de sua autoridade para tomar decisões nada democráticas quanto à segurança da viagem. De quebra, ao recolher no meio do caminho um fora da lei, Ringo Kid (John Wayne), o delegado passa a escoltá-lo para a prisão desnecessária. Diante do perigo, os argumentos da lei tornam-se letras mortas.

A figura do cocheiro é a mais caricata. Ele interfere na trama apenas para retroalimentar o humor. Sua utilidade se restringe a tumultuar, criando pequenos gatilhos que maximizarão as tensões.

O cavalheiro que corteja a dama é o símbolo da estética social do bom mocinho. Apesar de viver dos ganhos do carteado, mantém o bom caráter.

A outra fonte de comicidade é o vendedor de uísque, confundido com um provável reverendo. O médico torna-se seu amigo inseparável e se encarrega de cuidar da maleta abarrotada de garrafinhas de uísque que serão consumidas, um a uma, ao longo da tumultuada jornada.

Há ainda que se falar do banqueiro, figura representativa do quadro social tradicional. Todavia, depois se saberá, entrara na diligência para fugir às consequências de suas falcatruas.

No Tempo das Diligências resume a essência sacralizada do faroeste como vitrine social e política da expansão econômica dos E.U.A após a Guerra da Secessão.

E, por fim, a figura romantizada do fora da lei, que porá em ação suas habilidades no manejo da arma para defender os viajantes. Sua ação heroica será seu salvo-conduto para a felicidade, resgatando da lama social a dama perdida, oferecendo a ela os louros da decência em um distante rancho em meio a montanhas, às margens de um pacífico riacho.

Em suma. No Tempo das Diligências é, acima de tudo, um pequeno tratado social apoiado por um bom roteiro, uma boa direção e ótimos atores — o principal deles, o bom e velho John Wayne, representante da ideia máxima do bem-intencionado cidadão norte-americano. Um filme que resume a essência sacralizada do faroeste, mas que, por ir além dos clichês, acaba fazendo parte da lista dos maiores clássicos do gênero. Ocupa, merecidamente, seu lugar no centro dos aplausos — honra que lhe cabe de direito.

 

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