Roberto Gerin

Resenha de Pequena Coreografia do Adeus, por Roberto Gerin

O PASSADO NOS CONVIDA A REFAZER NOSSO FUTURO

O novo romance de Aline Bei, PEQUENA COREOGRAFIA DO ADEUS, 279 pg., Ed. Companhia das Letras, surpreende pelo seu vibrante tom poético. Não que a autora não tenha já utilizado esta arma poderosa em seu romance de estreia — o premiado O Peso do Pássaro Morto. Porém, em Pequena Coreografia do Adeus, Aline Bei assume a poética como voz de protesto para retratar a vida de uma menina presa ao abandono afetivo. Esse manejo soberbo da poesia como veículo de emoções e síntese de experiências parece ser apenas um pretexto para a autora esgrimir sua exuberante literatura. No entanto, logo percebemos que sua escrita se alimenta de aguçada sensibilidade para retratar os mais imperceptíveis movimentos que compõem o terrível painel de dores. Aline Bei cria o vazio e nele faz sua protagonista existir.

Júlia é uma criança solitária, com baixa autoestima, que se vê presa à relação mal resolvida dos pais.

Basicamente, a trama se estrutura no tripé da família tradicional: o pai, a mãe e a filha. Mas há, sem dúvida, nessa tríade, material orgânico de sobra para compor a trama existencial do romance. E Aline Bei dá o tiro fatal no desfecho de sua fábula, ao se dobrar momentaneamente à autocomplacência. No apagar das luzes, depois de tudo o que lhe aconteceu, só resta à protagonista desfraldar a bandeira da compaixão. Em se tratando de ser humano que carrega histórias que o fragilizam, não há como colocar as relações familiares no cadafalso do simples julgamento. A luta perene cansa. Será necessário, em algum momento, depositar as armas.

Júlia é uma criança solitária, com baixa autoestima, que se vê presa à relação mal resolvida dos pais. Diante do rosário de agressividades emocionais e negligências afetivas, ela tenta compreender o que está acontecendo. Busca mudar sua história, construindo um relacionamento possível com a mãe. Mas, a cada fracasso, mergulha na sua pequenez.

Sobra-lhe o pai, de quem se aproxima na esperança de estabelecer compensações de vazios afetivos. Mas também pouco encontra do afeto seguro que busca. E, se encontra, é tão fugaz, que sequer há tempo para desfrutar.

É assim que a protagonista de Pequena Coreografia do Adeus se move. Por entre os escombros causados pela rejeição.

Resta-lhe insistir na quimera de que as coisas podem, sim, melhorar. Mas suas esperanças são abatidas em pleno voo com a separação dos pais. O pai, ainda um ancoradouro de pequenas afeições, ao abandonar a mãe, acaba se distanciando da filha. Pelo menos, esta é a sensação que toma conta de Júlia. Tudo se desmorona, não há mais com o que sonhar. O único passo a ser dado é ir em direção à vida adulta. É a fuga esperada por anos. Fugir do que ela chama de casa e que jamais será um lar.

A trama de Pequena Coreografia do Adeus, de espinha dorsal simples e efetiva, se atém a um relato de vida. Não há tensões narrativas, não há desdobramentos de ações que retroalimentem conflitos, não há armadilhas ao longo do caminho. O que há é apenas o que a própria vida oferece.

Ao se limitar ao cotidiano de uma menina que se reflete nas ações dos adultos como espelho de busca de si mesma, a autora nos disponibiliza a visão sensível da dor do abandono sistemático. É assim que a protagonista se move. Por entre os escombros causados pela rejeição.

Pequena Coreografia do Adeus é exatamente isso: uma coreografia silenciosa, ensaiando o adeus que resiste em se despedir.

Nesse sentido, para entender o que acontece, Júlia se utiliza da poderosa voz poética — que a autora tão generosamente lhe oferece — como arma de grito, como ponto de compreensão. À sua maneira, Júlia procura mitigar as dores do fracasso cotidiano. Recusa-se a entrar na fria câmara da desesperança. Vai desenvolvendo a consciência de que a dor, acariciada pela poesia, será sua companheira inseparável.

A questão que se coloca é muito simples. O que uma criança indefesa pode fazer em favor de si mesma? Qual sua capacidade de mudar o destino que lhe é imposto por erros alheios? Parece não haver escolhas para Júlia. Nem em sonhos. Diante da perversa frieza da mãe e da autoindulgência do pai, não há pedras disponíveis para refazer o caminho. A família já está constituída na sua dinâmica destrutiva, tendo no centro da centrífuga emocional uma criança desamparada.

À medida que a narrativa avança, fica claro que Júlia vai desistindo da mãe. No entanto, ela reluta — posto que não se abandona impunemente uma mãe, seja quem ela for. Nesse diapasão emocional, sempre caberá um pequeno espaço para novas tentativas. Pequena Coreografia do Adeus é exatamente isso: uma coreografia silenciosa, ensaiando o adeus que resiste em se concretizar, mas que, sabe-se, em algum momento da vida, fará seu último gesto.

A diagramação escapa maliciosamente ao padrão a que estamos acostumados ao ler um romance.

A precisão de linguagem com que Aline Bei desenha os movimentos internos da pequena protagonista chega a ser assustadora. A autora demonstra real intimidade de quem conhece os sulcos de dores que marcaram a pele e a alma da criança Júlia. Neste sentido, trago para esta resenha um pequeno trecho que demonstra como Júlia, sem o saber, no seu desespero, busca manter o frágil elo afetivo que a mantém ligada ao pai — que, ausente, ainda é seu ponto futuro na busca por afeto. Há uma possibilidade; sua intuição a alerta. Diz Júlia: “quando meu pai fosse embora, eu sentaria naquele sofá incontáveis vezes apoiaria meu copo d’água na sombra do seu copo de cerveja.”. O afeto que se refaz no desejo transformado na sua mais pura manifestação poética.

Mas vamos ao que efetivamente logo de início surpreende o leitor. O formato impresso de Pequena Coreografia do Adeus. Sua diagramação escapa maliciosamente ao padrão a que estamos acostumados ao ler um romance. O visual tem um impacto peculiar e efetivo na leitura. É a distribuição de palavras ao longo da página que determina como vamos ler, como vamos nos sentar para ler, como vamos sentir o peso de cada emoção metaforizada, com que velocidade caminharemos sobre as páginas. Há uma teatralidade corporal nas palavras que vai além da simples semântica. Algumas se exibem solitariamente, outras apenas se acomodam diante dos nossos olhos, outras se apequenam, reduzindo-se a sua frágil autoestima, outras ainda bradam, desrespeitando a pontuação que, aliás, é de uma deliciosa rebeldia. E há as que se escondem de si mesmas, cabendo ao leitor decifrar suas intenções.

Em Pequena Coreografia do Adeus, o que nos salta aos olhos é o jogo diabólico que a autora faz entre o abstrato e o concreto.

Reforçando, a diagramação tem um efeito decisivo na relação emocional do leitor com a história narrada. Referindo-nos ao teatro, é como se as palavras se condicionassem a marcações antecipadamente ensaiadas, com o objetivo de explicitar para o leitor certas reações e ações da personagem. A autora distribui pelas páginas suas “explicações” interiores, fingindo camuflar seus sentimentos, disfarçando o que ela pensa sobre o que está dizendo. Há uma contemporaneidade estupenda nessa proposta diagramática.

E, por fim, a grande surpresa fica por conta do tom poético, levado, em Pequena Coreografia do Adeus, a surpreendentes extremos. O que nos salta aos olhos é o jogo diabólico que a autora faz entre o abstrato e o concreto, perpetrando uma manipulação perversa das sensações do leitor. É tão hábil, que o exemplo dado acima — quando a ausência do pai, simbolizado no copo de cerveja, se transforma numa simples sombra — nos remete imediatamente à incômoda mistura de abandono, saudade e esperança. Na poesia de Aline, tudo leva ao real. Esse estilo de fazer poesia traz prazeres renovados ao leitor, que se coloca diante de uma prosa contaminada por múltiplos sabores sensoriais.

Em suma. Estamos diante de mais uma grata surpresa, que nos faz acreditar que a literatura brasileira atual esteja produzindo muito material literário de grande resultado artístico. Pensando em Aline Bei, só nos resta declarar que já estamos esperando pelo próximo projeto. Mas, sem ansiedade. Afinal, artista não constrói para si linha de produção. Então, cabe ao leitor continuar a degustar outras literaturas nacionais, enquanto espera por mais uma flor desse profícuo Lácio.

 

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