Roberto Gerin

Resenha O Ovo da Serpente Roberto Gerin

NINGUÉM PERTURBARÁ A SERPENTE

Com o intrigante filme O OVO DA SERPENTE (120’), produção EUA/ALEMANHA (1977), Ingmar Bergman, que também assina o roteiro, ao ir em busca de novas perspectivas artísticas, parece sair da curva criativa e estética que marcou sua filmografia até então. Óbvio que esta curva não é tão acentuada assim, a ponto de desfigurar o Bergman original. Sabemos que ele trabalha com o humano. Com os monstros que habitam nossas escuridões. Com as perguntas sem respostas. Neste filme, não é diferente. Sua câmera continua sendo monitorada pela mesma sensibilidade de artista completo que sempre foi. Portanto, o Bergman, de certo modo, permanece intacto. O que nós vamos presenciar em O Ovo da Serpente é algo que escapa das quatro paredes e invade as ruas de Berlim. O isolamento e os cenários intimistas, tão caros a Bergman, não cabem aqui. O que ele faz é inserir suas personagens numa estrutura política, econômica e social à beira do abominável. É Bergman se colocando diante de um mundo em perigosa transformação, com o desafio de entender o que está acontecendo. Tudo acontece porque Bergman é convidado a roteirizar e dirigir este projeto germano-americano, tendo por trás, na produção, o robusto Dino de Laurentiis. E Bergman, depois de muita pesquisa histórica, compõe um painel absurdo de uma Alemanha daquele novembro de 1923. Era a Alemanha se preparando para gestar o ovo da serpente. O nazismo.

Abel Rosemberg (David Carradine) é um trapezista norte-americano desempregado que acaba de chegar a Berlim com seu irmão, Max, e a cunhada, Manuela Rosemberg (Liv Ullmann). O que ele vai encontrar em Berlim não é nada animador. Pelo contrário. A cidade está devastada por uma crise econômica nunca vista antes. A inflação é acachapante, há desabastecimento, a desesperança toma conta da população alemã e, pairando sobre essa dura realidade, um governo inoperante, tão perdido e tão impotente quanto seus governados. É neste quadro de desolação que vemos Abel andar pelas ruas, sem rumo, em busca de bebida e comida. E, para piorar a situação, e este é o início do filme, Abel, ao retornar à pensão onde morava, ao subir as escadas e abrir a porta do quarto, depara-se com o irmão morto. Se antes Abel ainda tinha um referencial, agora tudo parece perder-se de vez. É, pois, com os olhos desse desesperado Abel, abatido pelo medo, que Bergman vai nos mostrar a Berlim de 1923 chocando o seu terrível ovo.

Onde reside a lógica da desintegração da sociedade alemã que possibilitou o surgimento do nazismo? No caso da alegoria trazida por Bergman, que possibilitou que o ovo da serpente fosse chocado? Cada um pode ter a sua resposta, mas acreditamos que todas, de um modo ou outro, convergem para a mesma certeza. A de que tudo era muito óbvio demais para que não pudesse ser percebido.  Como nos mostra Bergman, a membrana transparente do ovo estava lá, e através dela podia-se ver, escancarado, o vulto da serpente, o símbolo de uma dos maiores desastres humanos de que se tem notícia.

Mas há, sim, respostas mais objetivas para explicar tamanha ruptura moral. No caso da Alemanha, a causa do esfacelamento social teve seu início com a humilhante derrota a que foram submetidos os alemães na Primeira Guerra Mundial, incluindo-se aí os acordos absolutamente desfavoráveis impostos aos derrotados. E, na sequência, veio a incapacidade de os alemães se reerguerem economicamente após a guerra. Com isso, a desarticulação econômica, agravada por uma indústria inoperante e uma estrutura de Estado arcaica, levou à desarticulação social. Tudo vira pó. Não há referenciais. Não há sentido de vida. Há apenas os famintos vagando pelas ruas, o medo corroendo a esperança e, como proclama a própria Manuela, “as pessoas perderam o futuro!”. É o que mostra Bergman através de seu personagem principal. Um Abel Rosemberg onipresente, vagando sobre escombros nesta terra de ninguém, esse ser humano sentindo na pele, como judeu, os primeiros ventos fúnebres soprando contra o seu rosto. Ele é a figura que testemunha a maldade se infiltrar no vazio moral e nos escusos interesses políticos que moldariam a Alemanha nas próximas duas décadas, e, como sabemos, brindando-nos com suas terríveis consequências.

Mas nem tudo está perdido. Existem mentes lúcidas que lutam para que a democracia não saia dos trilhos. É como diz o inspetor Bauer (Gert Fröbe), que representa o Estado alemão titubeante, cujos olhos, tomados de medo, ainda conseguem vislumbrar o perigo do ovo sendo gestado. Diz ele, “tento criar um pedacinho de ordem e de razão no meio do caos”. Nosso inspetor, assim como tantos outros, os artistas, os intelectuais e uma pequena camada social que ainda permanecia lúcida, só conseguiriam resistir até 1933, quando finalmente o nazismo se instala no poder. É quando a serpente rasga a membrana do ovo e começa a rastejar pelos atalhos da história.

Ingmar Bergman refugiara-se na Alemanha, em Munique, depois de ter tido problemas com a receita federal sueca. Provara-se sua inocência, mas, deprimido e abalado, preferiu se ausentar do país. Foi esse pequeno acontecimento pessoal que levou Bergman a um encontro inusitado com Dino de Laurentiis, que resultaria na produção de O Ovo da Serpente. O resultado artístico, dizem, teria ficado um pouco abaixo em relação a muitos de seus principais títulos. Uma obra menor. Pode ser. E uma razão se explica. Em O Ovo da Serpente, Bergman nos apresenta um roteiro tradicional, com começo, meio e fim, dentro, portanto, de uma estrutura de desenvolvimento narrativo bem aristotélico. Uma estrutura não muito afeita aos moldes narrativos utilizados pelo roteirista Bergman, que costuma se desviar do rígido ritmo aristotélico para se debruçar demoradamente, em cenas perfeitas, sobre questões humanas, para ele muito mais importante do que manter o espectador preso a reviravoltas fabulosas como artifício para mantê-lo atento e motivado. Bergman, decididamente, não faz filmes comerciais. Desta forma, o inusitado da carpintaria dramática exigida pelo filme acaba expondo certas fragilidades na preparação do grande clímax. É demérito? Não. Porque Bergman, com sua genialidade, se salva.

Primeiro, basta observar a magistral atuação dos atores, todos. Segundo, vale lembrar que Bergman não nos distrai com detalhes inúteis. E isto fica evidente na atuação de David Carradine, magistral, onde os gestos acabam sendo mais eloqüentes que a fala. A câmera denuncia o olhar atônito de Abel diante do que ele está vendo acontecer. Principalmente, no confronto final, com o médico Hans Vergerus (Heinz Bennent), quando Abel efetivamente descobre o que está acontecendo nos porões da Alemanha, onde já se iniciavam experimentos com seres humanos com a finalidade do domínio político e racial absoluto. O personagem Abel fala pouco, mas ele acompanha toda a dramática situação de Berlim, com suas fomes, com suas injustiças, com a complacência da polícia em não evitar que judeus sejam espancados e mortos, com um judiciário leniente, enfim, com um futuro sem rosto para uma Alemanha inerte, à espera do dia fatal. Abel silencia, porque não há outra forma de gritar. O prato insosso está pronto para ser servido. E os alemães, famintos e desempregados, vão se aproximando e se alistando como garçons. Vão aos poucos trocando a democracia pelo discurso de ódio de um silencioso ditador.

É verdade que os valores morais são intocáveis, sempre. Não são causa nem efeito. Eles pairam acima da lógica da ancestralidade, e são tão invisíveis, que passam despercebidos no dia a dia. Mas são esses códigos intocáveis que permitem uma convivência mínima aceitável entre humanos e sociedades. Portanto, quando esquecemos o outro é porque esses códigos foram violados. E o caos, então, se instalará. E era o que estava acontecendo na Alemanha, naquele novembro de 1923, quando Herr Hitler ensaiava, em Munique, seu primeiro ataque à democracia. É quando saem os valores e prevalecem as ideias. Pior. Ideias em forma de slogans.

Tudo isto, o que é dito acima, quem nos mostra é Bergman. Estamos apenas traduzindo em palavras fáceis aquilo que vem embutido numa dinâmica oculta, mas inexorável. É esta inexorabilidade do destino de uma nação que torna o filme O Ovo da Serpente assustador. Uma nação cega e surda, desesperada e sem rumo, chocando, silenciosamente, seu futuro desastre humano.

 

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