Roberto Gerin

Resenha A Lista de Schindler, por Roberto Gerin

UM FILME DE ARREPIAR!

A LISTA DE SCHINDLER (197’), direção de Steven Spielberg, EUA (1993), ganhador de sete Oscar, sete Bafta e três Globos de Ouro, é um daqueles filmes que são produzidos para colocar a história no seu devido lugar. Por isso não poupa os horrores, não poupa realismo. O que vamos ver na tela é uma réplica terrível de fatos que assombram a história do holocausto. E para dar certificado à verdade, vamos ver no final do filme a singela cerimônia dos idosos sobreviventes — eis o belo toque documental —, salvos pela corajosa intervenção do empresário alemão Oskar Schindler. É por causa dele que os mil e cem sobreviventes são também conhecidos como os judeus Schindler.

Trocando em miúdos, A Lista de Schindler nos coloca diante de reais fatos históricos. E o filme acaba sendo uma homenagem justa a este homem cuja coragem trouxe alívio para muitos em meio aos sofrimentos causados pela guerra e pela perseguição aos judeus. Como tantas outras histórias de generosidade, esta também tem a marca do heroísmo.

Por trás de uma alma cheia de vícios, existia o humano pronto para seguir caminhos inesperados.

Oskar Schindler, nascido em 1908, no que conhecemos hoje como República Checa, deixa a mulher no interior e vai para a Cracóvia tentar se fazer na vida. Homem de traços finos, gostos requintados, elegância meticulosa, colecionador de amantes, de grandes festas e farta bebida, este ser profano tinha um único objetivo: ficar rico. E espertamente logo percebe que a guerra, e em particular a perseguição aos judeus, poderia lhe render enormes vantagens. Em 1939, com a ajuda de judeus ricos, compra uma fábrica de esmaltados falida. Alemão, nazista, articulado, inescrupuloso, ele consegue, com subornos, corromper as altas patentes do Reich, transformando-se num dos homens mais ricos e influentes da Polônia.

A Lista de Schindler monta um vigoroso painel das perseguições aos judeus na Cracóvia.

Este é o início da trajetória de um homem ambicioso, que de bem-intencionado não tinha nada, pelo contrário, com movimentos claramente egoístas aproveitou-se dos pobres judeus como mão de obra barata para atingir seus objetivos. Aliás, muitos industriais à época aproveitaram-se de mão de obra gratuita para, sob o disfarce do esforço de guerra, alavancar seus negócios. Neste panorama, o que Oskar Schindler tinha de diferente era que ele tratava com urbanidade os seus empregados. Por trás de uma alma cheia de vícios, existia o humano pronto para seguir caminhos inesperados.

Ao relatar a trajetória da personagem Oskar Schindler (Liam Neeson, fenomenal), A Lista de Schindler monta um vigoroso painel das perseguições aos judeus na Cracóvia, desde a invasão da Polônia, em setembro de 1939, até a derrocada do regime nazista, com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.

Depois de matar alguns “ratos”, deposita o fuzil e vai urinar.

A primeira parte de A Lista de Schindler se ocupa em esboçar a figura de Oskar Schindler, com suas manobras duvidosas para adquirir a fábrica e aparelhá-la com mão de obra judia. A partir do instante em que o gueto é desocupado (1943), e todos os judeus — inclusive os empregados de Schindler — encaminhados para o campo de concentração, inicia-se aqui, com cruel acabamento de cenas, toda uma sucessão de horrores que irá representar a história dos milhões de judeus mortos nos campos de concentração alemães.

Para sedimentar a estrutura da maldade, surge a personagem do mal no comandante do campo de concentração, Amon Goeth (Ralph Fiennes). Ele vai nos proporcionar uma bateria de cenas horripilantes, em detalhes clamorosos — comporta-se como um imperador romano —, com especial atenção para a cena que acontece no minuto 75 do filme, uma das piores a que se pode assistir em qualquer produção sobre o holocausto. É o auge da barbárie, é a anulação do ser humano provido de racionalidade, é a cena em que Amon, da sacada de sua casa, faz tiro ao alvo em seres humanos, quer dizer, em judeus. Depois de matar alguns “ratos”, deposita o fuzil e vai urinar.

A Lista de Schindler nos oferece um cardápio de cenas de pura humanidade.

A parte mais emblemática da longa narrativa é quando Oskar Schindler passa a conviver com o sanguinário Amon Goeth. Afinal, a fábrica também teve que ser transferida para dentro do campo de concentração. Na base desta convivência “amistosa” está o suborno. Na visão dos oficiais alemães, Schindler sabia o que era gratidão. Não era uma ideia vaga, dinheiro é concreto e aparece com facilidade sobre as mesas dos que decidem. E Oskar Schindler sempre fica agradecido quando seus interesses são atendidos. E os oficiais ficam ainda mais agradecidos com os agradecimentos de Oskar. É esta dinâmica de corrupções que vai possibilitar a Schindler executar seu plano de salvar mil e cem judeus. Cada vida terá seu preço.

Do tripé de personagens que move a narrativa, falta falar do hábil contador que comandará a fábrica de panelas, o judeu Itzhak Stern (Ben Kingsley, perfeito). Como ótimo farejador de oportunidades, Oskar Schindler encontra em Stern sua garantia de sucesso comercial. E será Stern quem o ajudará na execução do plano de libertação dos judeus. A conversa de apresentação entre os dois define como será a relação entre eles. Diz Itzhak. “Por lei, tenho que avisar que sou judeu.”. No que Oskar responde. “E eu sou alemão. Assunto encerrado.”.

Esta cena não estava no cardápio comercial de Schindler.

Itzhak Stern, homem simples, objetivo e cauteloso, é quem irá estimular o lado “bom” de Oskar Schindler. Até certo momento do filme, a dicotomia entre bom e mau em Schindler será uma convivência linear, pouco conflituosa. Mas a construção do arco da personagem em direção à sua transformação para o bem se dará ainda no começo do filme, quando Itzhak introduz o senhor idoso e maneta que vem agradecer a Schindler pelo emprego na fábrica. Quem lhe dera o emprego foi o próprio Itzhak. Schindler reage à presença do homem e censura Itzhak pela sua ação humanitária. Esta cena não estava no cardápio comercial de Schindler. Mas é ela que vai acender em Oskar a primeira chama da bondade.

O filme A lista de Schindler traz a bondade como passaporte para a sobrevivência.

(No minuto 125 de A Lista de Schindler é quando se dá a transformação definitiva em direção acelerada ao homem “bom”. É quando Schindler, compadecido, pega a mangueira e banha os judeus empilhados nos sufocantes vagões do trem.)

Vale ressaltar uma das características mais bem construídas da personalidade de Oskar Schindler. Ele reage à ideia de ser uma pessoa bondosa (diferente de Amon, que não reage à ideia de ser mal). Para Schindler, a bondade não está na base da construção da sua fortuna. Ele reage a todo pedido que pressupõe o ato de ser bondoso. Às vezes, com fria agressividade. É como se batessem à porta, ele abrisse, visse quem é, batesse a porta na cara, para logo em seguida abri-la e convidar a pessoa para entrar. Esta dinâmica constitui o fundamento original da personagem Schindler, que possibilitará encaminhar o seu arco para a ação máxima do filme — a de salvar os mil e cem judeus.

Em A Lista de Schindler, a realidade transcende as veleidades ficcionais e vai bater à nossa porta, impiedosamente.

Ainda analisando os movimentos de Schindler, percebemos que sua forma de reagir à bondade é pender perigosamente para o mal. Chega a defender o humanismo em Amon! Na guerra, diz ele, mostramos nosso lado ruim. Mas se estivesse tudo normal, também Amon seria uma pessoa boa! Veja a perversa dialética construída para justificar o injustificável. Inclusive para si mesmo, pois Schindler não era tolo o suficiente para não conseguir separar a maldade de suas circunstâncias. Neste caso, o mesmo pé que pisa o tapete vermelho é o pé que depois pisará a lama. Mudam as circunstâncias, mas o pé é o mesmo.

Cabe mencionar de passagem a famosa cena da menina de vermelho caminhando pela rua do gueto, e lá em cima Oskar Schindler, a cavalo, observando os trágicos acontecimentos.  É um dos pontos mais sensíveis e bem-acabado de A Lista de Schindler. O vermelho inocente em meio às barbáries em preto e branco — escolha estética decisiva — pode nos trazer várias simbologias. Deixamos aqui apenas uma. A significação do momento em que Schindler de fato toma consciência dos horrores em que ele próprio está envolvido.

A realidade em A Lista de Schindler suplanta as veleidades ficcionais.

Em suma. As terríveis situações de guerra e a implacável perseguição aos judeus é que vão construindo a alma virgem de Oskar Schindler. Vem do interior para a cidade grande com o sonho de encher duas malas de dinheiro. Enche mais que isso. Crava seu nome na história. E quem burila sua alma é o silencioso contador Itzhak que, serenamente, vai alimentando em Schindler o fogo brando da infinita compaixão.

Temos, e é nosso desafio, que olhar com muita atenção (e espanto) para o que o filme nos mostra. Pode parecer ficção, imaginação de roteirista e idiossincrasias de diretor. E são. Só que a realidade transcende as veleidades ficcionais e vai bater à nossa porta, impiedosamente. O que está ali na tela não aconteceu exatamente daquele jeito. Nem podia. Aconteceu pior! Posto que a arte, por mais nobre, jamais é corajosa o suficiente para abraçar a realidade.

 

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