Roberto Gerin

Resenha A Noviça Rebelde Roberto Gerin

QUANDO A FICÇÃO SE CONFUNDE COM A VIDA

A primeira pergunta que se pode fazer sobre o icônico filme A NOVIÇA REBELDE (174’), direção de Robert Wise, EUA (1965) é a seguinte. O que faz este filme ser tão apaixonante? A ponto de ser ainda hoje uma das maiores bilheterias no mundo? O sucesso vem desde a estreia, quando logo superou E o Vento Levou, até então o filme que mais espectadores havia levado às salas dos cinemas. Mas isto são apenas estatísticas. Engrandece o filme, mas não explica o sucesso dos dias de hoje. Portanto, o que se tem que colocar é outra questão. Como um filme musical, longo, do tempo em que existia a tal intermission, leia-se “intervalo”, filme de três horas de duração, pode ainda atrair o interesse de espectadores em pleno século XXI, o século da transitoriedade, do descartável, da impermanência?

Para os dias atuais, o mundo retratado em A Noviça Rebelde nos parece lento e melódico.

Óbvio, a primeira razão para explicar o sucesso vem de pronto. É um belo de um filme! No entanto, este sucesso talvez não reflita o contido entusiasmo que se costuma dedicar aos grandes clássicos, tidos como coisa de cinéfilo. Neste caso, A Noviça Rebelde teria que nos oferecer muitos atrativos, pois se trata de um filme que nos parece um tanto deslocado em um mundo cuja percepção da realidade passa distante do romantismo, do lúdico e de melodias tão sonoras que grudam em nossa alma e fazem brotar emoções dos nossos olhos. Bem diferente das batidas do mainstream atual, onde a violência da percussão abafa as sutilezas das notas.

Portanto, já se sabe. O mundo retratado em A Noviça Rebelde é lento e melódico. Mas, apesar dos rótulos, há sim pessoas dispostas a se sentar no sofá e curtir, por três horas, o filme. Não se importam em fazer destes momentos um belo refúgio que os leve para bem longe de um cotidiano tão barulhento quanto irritantemente fugaz. E talvez exista ainda uma outra explicação mais objetiva para entender por que este clássico ainda agrada. É que A Noviça Rebelde provoca em nós um memorável reencontro com o cinema.

O filme A Noviça Rebelde é baseado no premiado musical de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, The Sound of Music.

O filme é baseado em uma história real. A família Von Trapp existiu. Rica, sofreu com a crise financeira da década de trinta, eco do colapso da bolsa de valores norte-americana, em 1929. A família, agora pobre, representada pelo viúvo, por sua nova esposa Maria, uma ex-noviça, e por seus sete filhos viu-se obrigada a cantar para ganhar dinheiro. Para o capitão da marinha austríaca era algo humilhante, mas tem-se que sobreviver.

Até que, em 1938, com a anexação da Áustria pela Alemanha, a família — antinazista — vê-se obrigada a fugir. Desembarcariam nos Estados Unidos e lá continuariam sua bem-sucedida trajetória musical. Portanto, o núcleo dramático de A Noviça Rebelde é retirado da realidade e empregado na composição de um roteiro que, para chegar às telas, em 1965, teve que percorrer um curioso, mas sólido, caminho.

Eis o pedigree do roteiro do filme A Noviça Rebelde!

O filme é baseado no premiado musical de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, The Sound of Music, que entraria em cartaz na Broadway em 1959 e que, por sua vez, é livremente baseado em um filme alemão ocidental, Die Trapp-Familie, de 1956, que, por sua vez, baseara-se no romance biográfico The Story of Trapp Family Singers (1949), escrito pela própria Maria Von Trapp, a verdadeira. Este é o pedigree do roteiro do filme A Noviça Rebelde.

No entanto, o roteirista Ernest Lehman precisou se distanciar da realidade dos Von Trapp e dar ao roteiro um toque romântico para que o filme alcançasse o resultado musical comercialmente desejado. Tudo bem, nenhum pecado nisso. Entendemos que o capitão Von Trapp do filme não pode ser igual ao capitão Georg Von Trapp da vida real. Este, dizem, parece ter sido bem mais bonzinho que seu homônimo das telas.

Maria Von Trapp teria confessado que se casara com o capitão sem amá-lo.

Nem Maria, a noviça rebelde, seria o retrato da Maria que escreveu as memórias da família. Mesmo porque a Maria real, a Von Trapp, teria confessado que se casara com o capitão sem amá-lo. Ora! Fato inconcebível para uma Hollywood que existe para oferecer ao público inesquecíveis momentos de amor. E momentos inesquecíveis são o que A Noviça Rebelde nos oferece. À farta.

Pois bem. Há outras razões para estocar pipoca e sentar por três horas diante de uma tela qualquer para assistir a A Noviça Rebelde. Uma delas são as melodias.

As melodias encaixam-se à perfeição no ritmo e atmosfera das cenas.

Mesmo os ouvidos mais sofisticados poderão concordar que a trilha sonora atende à proposta do filme. As melodias encaixam-se à perfeição no ritmo e atmosfera das cenas. A melodiosa Edelweiss — que muitos pensam ser um canto folclórico austríaco, confundindo com a flor, também de nome Edelweiss, esta sim um símbolo na Áustria — fora composta para o musical da Broadway, em 1959, como tema de despedida do capitão Von Trapp da sua querida pátria. Esta melodia provoca um apelo emocional inigualável se comparada a outras obras musicais do gênero.

E é melhor que se confesse. Talvez a empolgação em aclamar o musical A Noviça Rebelde venha da memória afetiva de quem — este que escreve — assistiu ao filme pela primeira vez aos onze anos de idade. Mas não se preocupe. Há outras razões que vão além do estrito gosto pessoal.

Uma das grandes razões para o sucesso de A Noviça Rebelde é a atuação impecável de Julie Andrews.

Outra boa razão para preparar a pipoca: o romance ruborizado entre a noviça (rebelde) e o capitão Von Trapp (durão). Há algo de idealizado neste romance que escapa à compreensão do imediato, nos transportando para algo que é ao mesmo tempo óbvio e inevitável. O amor tinha que ser. Podia não ser na realidade, mas nas telas, onde quem manda é a ficção, só mesmo um roteirista com alma gélida e insensível não se dobraria aos encantos da fantasia.

Agora a última razão para assistir ao filme, caso o espectador não esteja ainda convencido. A personagem, a protagonista Maria! Uma das grandes razões para o sucesso de A Noviça Rebelde. Julie Andrews, maravilhosa, já escolada com o papel anterior, de outra Maria, a Poppins, chegou e disse: esta é Maria. E Maria se fez! Segura, consciente de si, irreverente, rebelde (eis!), mas rebelde com causa, não especula a vida, apenas vive, é pró-ativa (qualquer empresário moderno a contrataria para qualquer cargo), sensível, humana, disponível, que encarou o mau humor do capitão Von Trapp (Christopher Plummer, o próprio também mal-humorado) como quem encararia um pitbull faminto.

Alguém tem que empurrar a história para um determinado rumo.

Por fim, é hora de nos remetermos aos momentos lúdicos que fazem a delícia do filme. Aquele bando de crianças correndo pelas ruas de Salzburgo, subindo em árvores, quebrando regras e… cantando! Sim, era proibido cantar na mansão dos Von Trapp. Carentes de mãe, pai viúvo, autoritário e ausente, as sete crianças veem-se agora acolhidas por aquela jovem mulher com vívida percepção da realidade cotidiana. E é esta jovem que, ao sair do convento, onde se sentia engessada pela mediocridade típica dessas instituições, se liberta, e, ao se libertar, libertaria com ela as crianças da família Von Trapp, até então aprisionadas por rígidas regras militares.

A Noviça Rebelde transita pela ficção de forma tão real que realidade e ficção se confundem.

Em suma. Ao nos darmos conta da força humana emanada da personagem Maria, e validada pela extrema competência de Julie Andrews, podemos dizer que nenhum romance, nenhum teatro e nenhum filme existem de verdade sem que alguém competente, corajoso e inteligente se proponha a fazer com que a narrativa funcione. Alguém tem que empurrar a história para um determinado rumo, e este alguém tem que ser, de preferência, o protagonista. De preferência, não necessariamente, claro. Se analisarmos muitas estruturas narrativas, veremos às vezes um coadjuvante, voluntariamente perspicaz e acima de tudo maldoso (Iago, de Otelo), obrigando o protagonista a agir. Tudo bem. Palmas para o fofoqueiro! Mas é o protagonista que tem que nos encantar. No caso de Maria, a noviça rebelde, ela transita pela fábula de forma tão real que a realidade se confunde com a ficção. Opa, desculpe! É o contrário. A ficção é que se confunde com a vida.

 

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1 Comentário

  1. […] Nesta lista, só para elencar algumas sugestões, poderiam estar Uma Linda Mulher, Forrest Gump, A Noviça Rebelde, Ao Mestre Com Carinho, My Fair Lady, Rei Leão, Cidadão Kane, E o Vento Levou…, um Ingmar […]

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