Bastardos Inglórios
DIÁLOGOS QUE FAZEM JORRAR SANGUE
Talvez Quentin Tarantino possa nos responder. Quanto sangue é preciso derramar para se fazer valer uma vingança? Lembremos que vingança só se faz com as próprias mãos. Ou por mãos alugadas, como queiram. Agora, se para reparar um malfeito for preciso recorrer à justiça, que é o caminho civilizado, por se tratar de uma instituição imparcial, não se poderá falar de vingança, pois caberá ao Estado fazer justiça por nós. O que nos leva a concluir que, se quisermos nos vingar, na acepção tribal do termo, vamos ter que esquecer a justiça e partir pra briga. No entanto, tal decisão, na vida real, traz um risco enorme. Responder perante a Lei pelos nossos atos. Mas no cinema, não. Eis! Lá, nas telas, é permitido sujar as próprias mãos com sangue. Como nos ensina Tarantino. E é o que faz Hollywood. Espertamente. Ou melhor. Comercialmente.
No entanto, se pensarmos que Hollywood está inserida na cultura americana, porque, afinal, Hollywood existe lá, nos Estados Unidos, vamos talvez não entender uma contradição. Uma sociedade que se construiu sob a égide de uma Constituição forjada nos direitos humanos, Constituição séria, bafejada pelos fortes ventos humanistas que vinham, à época, da Europa, enfim, se é uma terra civilizada, por que a cinematografia é construída de um modo em que o protagonista, vítima de injustiça, prefere resolver a pendenga pelas próprias mãos, no olho por olho, no dente por dente? Perceba. Sempre vai existir o xerife, o cara que prende e que enforca. Em qualquer cidadezinha americana. Mas a vingança, esta magia alucinatória e catártica, é feita na base do bang! bang! Dane-se a Lei! Sabe por que dane-se a Lei? Porque a vingança vende. A vingança rende ótimos roteiros. A vingança nos deixa possuídos, porque, lá no fundinho da nossa alma obscura, sempre desejamos fazer justiça com nossas próprias mãos. Chutar, xingar, caluniar, cuspir, sequestrar… Matar, talvez. Sim. Por isso é tão bom ver nossos heróis fazendo isto por nós nas telas dos cinemas! Dá-nos um prazer. Estético?
Quentin Tarantino usa esta fórmula com maestria, a de explorar a insondável necessidade humana de revidar o mal. Muita palavra, muito sangue, eis sua estética. Kill Bill talvez seja a bíblia da vingança. Mas ele leva essa fórmula, em maior ou menor grau, também para seus outros filmes. E o impactante BASTARDOS INGLÓRIOS (153’), direção dele, Quentin Tarantino, EUA/Alemanha (2009), não é diferente. A diferença é que a vingança aqui é imponderável. Envolve a humanidade e seu destino. Mas, no fundo, a regra é a mesma. O sangue vai jorrar.
Shosanna Dreyfus, após ver sua família judia ser fuzilada pela SS, polícia (paramilitar) do Estado nazista, no porão de uma casa de campo francesa, onde outra família, francesa, não judia, os escondia, acaba fugindo à tragédia, sendo a única sobrevivente. Some no mundo. Vai para Paris, onde, não se sabe como, torna-se proprietária de um cinema. A Segunda Guerra Mundial vai chegando a seu fim, e ela continua tocando seu negócio, de onde tira o sustento, dela e de seu amado, um negro. Até que… Apresenta-se-lhe a oportunidade da vingança. Está armada a situação para o desfecho do filme.
Mas antes do desfecho, outro veio narrativo se desenvolve. Em paralelo à trajetória de Soshanna. Histórias paralelas, posto que uma não se conecta a outra. Um grupo de soldados judeu-americanos, desatinados, querem vingar a violência nazista contra os seus pares, também judeus. Desembarcam na França e tocam o horror nas hostes nazistas. Divertem-se escalpelando soldados alemães. É um ritual. Absurdo, difuso. Personificado pela figura grotesca e verbalmente histriônica de Aldo Raine (Brad Pitt), o chefão implacável do pelotão dos bastardos.
Mas há mais personagens. Talvez as mais interessantes e bem construídas, duas, que dão caldo ao roteiro fumegante de Bastardos Inglórios. São, primeiramente, o coronel da SS, Hans Landa, personificado pelo incomparável Christoph Waltz. Ele personifica a maldade a ser vingada. Sua bíblia é o cinismo. Seu lema é a competência. E competência, evidente, significa encher os campos de concentração de judeus.
A outra figura, talvez a mais icônica, onde Quentin Tarantino despeja o lado obscuro e doentio do ser humano inserido naquela barbárie, é o soldado raso Fredrick Zoller (Daniel Brühl). Catapultado a herói de guerra, cujos feitos nos campos de batalha, onde matou, matou e matou, em três memoráveis dias, quase 300 soldados aliados, pois este feito heróico é transformado em filme, e ele, o soldado Zoller representa ele mesmo nas telas, o protagonista do filme dentro do filme, o herói. Opa! Falamos em filme? Eis a conexão com o cinema de Shosanna, agora chamada Emmanuelle Mimieux, no corpo e na voz da magistral Mélanie Laurent. É no cinema de mademoiselle Mimieux que se dará a première do filme. O lançamento. E com a presença de quem? Tarantino coloca o Hitler no cinema de Shosanna! É muita safadeza (no bom sentido) criativa.
Mas complementando a proposta do parágrafo anterior, preste, caro espectador, atenção à concepção da personagem Zoller, o tal soldado raso, o herói. Ele simboliza o que há de pior num ser humano. A ideia de que com o poder nas mãos tudo se pode. Uma vez alçado a herói, vira mito, e o mito, sabendo da cegueira dos seus bajuladores, faz deles o que quer. Deles e dos demais. Por que, caro espectador, o mito c’est moi. Este é Zoller, o que exige o amor de Shosanna e não aceita o não como resposta. E ao ouvir o não, faz-se a tragédia. Esta é a síntese de Bastardos Inglórios.
Antes de encerrar, vamos rapidamente levantar uma questão primordial na filmografia de Quentin Tarantino, e que, evidente, todos aqueles que apreciam sua obra estão cansados de saber. Os diálogos. Serpenteantes, portanto, sempre traiçoeiros. Esta questão merece a análise de um especialista. Dissecar a função narrativa dos diálogos de Tarantino dentro de uma linguagem cuja principal matéria prima é a imagem. Sugerimos, talvez, que se coloque frente a frente, de um lado, Tarantino, e do outro, Serguei Eisenstein. Palavra e imagem. Magistralmente, um e outro, usam uma e outra para o mesmo fim. Gerar, de forma absurda e insuportável, a tensão narrativa. A primeira cena do filme Bastardos Inglórios, quando Hans Landa discorre sobre a necessidade de matar os ratos, enquanto, sabemos, prepara o morticínio sanguinolento dos judeus na casa dos LaPadite, temos uma amostra grátis, e mágica, do que é não aguentar mais esperar aquilo que sabemos que vai acontecer. Nas mãos de Tarantino, portanto, quanto maior o malfeito maior terá que ser o justiceiro. E maior, evidente, a quantidade de sangue a ser jorrado. Aí o filme fica bom demais! Porque mais uma vez teremos a oportunidade de, secretamente, lavar nossa alma de nossos pesadelos. Por isso que vale mais a pena ir ao Cinema do que ir aos Tribunais.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.
[…] e os que viriam na sequência a Pulp Fiction, Kill Bill, Os Oito Odiados, e, principalmente, em Bastardos Inglórios. O uso ferramental do diálogo extensivo e delirante como gerador de tensão no preparo cuidadoso […]
[…] para desenvolver sua dramaturgia de vingança e poder, regada, lógico, a muito sangue. Se em Bastardos Inglórios ele nos oferece sua versão pessoal sobre a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de registrar sua […]