Roberto Gerin

Resenha Central do Brasil, por Roberto Gerin

UM PAÍS À PROCURA DE SI MESMO

É correto partirmos do pressuposto de que a arte, para sobreviver ao tempo, precisa da originalidade. No entanto, não basta ao artista ter uma boa ideia, apenas. Precisa saber executá-la. E este acabou sendo o dilema de Walter Salles, diretor de CENTRAL DO BRASIL (113’), Brasil/França (1998). Detentor do argumento original do filme, percebeu o risco de não conseguir desenhar, ele próprio, um roteiro à altura da sua ideia. E a ideia era, de fato, original. Uma professora aposentada que escreve cartas, numa movimentada estação de trens urbanos, para pessoas analfabetas que querem entrar em contato com seus familiares e amigos. Sentindo o peso da responsabilidade de dar o acabamento perfeito ao roteiro, Walter Salles delegou a tarefa a Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein. Uma decisão, sem dúvida, acertada.

Central do Brasil escreve sua bela trajetória na história do nosso cinema.

Roteiro em mãos, produção e direção cuidaram do resto. A começar pelo elenco. A magistral Fernanda Montenegro, em desempenho memorável. Com ela, o garoto Vinicius de Oliveira, Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nachtergaele, Soia Lira, o terrível Otávio Augusto, Stella Freitas e Caio Junqueira. Como se vê, uma lista para ninguém botar defeito. Acrescentando-se a trilha sonora eficiente e a impecável direção de fotografia de Walter de Carvalho, não teve como não resultar, Central do Brasil, em uma das grandes obras primas do cinema brasileiro.

A primorosa produção significou a retomada do cinema tupiniquim, após anos sofrendo de estagnação criativa. Não à toa, os aplausos ecoaram mundo afora, com a indicação às estatuetas do Oscar de Melhor Filme estrangeiro (o vencedor seria A Vida é Bela) e Melhor Atriz para Fernanda Montenegro (que não levaria), uma façanha e tanto neste acirrado mercado de prêmios. Em noite de gala, Central do Brasil escrevia sua bela trajetória na história do nosso cinema.

Dora impiedosamente rasga a maioria das cartas.

Isadora, a professora aposentada, é um ser que nutre amarguras em relação à vida. Prende-se a um passado incompleto, na busca de ressignificar suas relações afetivas com o pai já morto. A essa estrutura emocional vem se juntar a história do menino Josué, cuja obsessão é conhecer o pai. É a partir do encontro entre Dora e Josué, numa estação de trem, a Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que se estrutura o argumento do filme.

A estação de trem não poderia ser local mais propício para Dora colocar sua mesa e cadeira e passar o dia escrevendo cartas para pessoas que desejam se comunicar com seus entes queridos, distantes na geografia e no tempo. O lugar de chegadas e partidas simboliza a separação, o distanciamento e a saudade. No entanto, Dora, na sua amarga insensibilidade, não está preocupada com os sentimentos de seus clientes. Isto se revela na forma como ela dá destino às cartas de pessoas que confiaram sua intimidade à escrevente.

O Brasil analfabeto possibilita a existência de Central do Brasil.

Dora impiedosamente rasga a maioria das cartas. Algumas, que lhe chamam mais a atenção, ela guarda numa gaveta, a que dá a alcunha de “purgatório”. E não se tem notícia — Central do Brasil não nos oferece esta imagem — de que ela tenha ido aos Correios postar alguma das prometidas cartas. A não ser em Bom Jesus do Norte, já no final do filme, quando, para se redimir de suas pequenas desonestidades, resolve entrar na agência dos Correios. Para Dora interessava apenas fazer um bico para aumentar a sua renda. Os sentimentos alheios eram apenas um produto a ser descartado.

Tudo começa a mudar com o que aconteceu com Ana, a mãe do menino Josué. Após pedir a Dora que escrevesse uma carta para o ex-marido, em que manifesta os desejos do filho em conhecê-lo, ela é atropelada e morta por um ônibus. Dora, a escrevedora de cartas, resolve então assumir o menino e sua obsessão. Os dois partem juntos em direção ao nordeste brasileiro, rumo a Bom Jesus do Norte, onde, pressupunha-se, morava Jesus, o pai de Josué.

Central do Brasil nos apresenta um Brasil exuberante e sincrético.

É a partir da estação de ônibus, no Rio de Janeiro, que o filme marca um itinerário imagético de cores vivas e duro realismo, numa exibição do exuberante, às vezes grotesco, sincrético e pobre interior do Brasil. É uma riqueza de culturas e vivências de um Brasil desconhecido, sobre o qual poucos filmes, desde Glauber Rocha, têm-se debruçado.

Talvez caiba aqui apenas uma análise, antes de encerrarmos esta resenha. E a discussão se coloca tendo como ponto de partida uma pergunta. Seria possível existir Central do Brasil se o Brasil não fosse um país de analfabetos?

Nesse quadro de incomunicabilidades, escrever uma carta para um ente querido era a única forma de se agarrar às raízes perdidas.

A produção do filme tem seu início na França, quando o produtor cinematográfico suíço Arthur Cohn, juntamente com Martine de Clermont-Tonnerre, entra em contato com o roteiro e fica convencido do potencial de sucesso do filme. Só que o filme, cuja ideia fora gestada no Brasil, não podia ser ambientado na França, lugar de letrados, onde não seria possível reproduzir uma realidade cuja base de existência é a fala de um país de analfabetos. E mais. Um país de intensa mobilidade horizontal, em que só cabem o abandono da terra natal, a despedida de familiares, a distância, a saudade e o desenraizamento. Essas realidades dolorosas surgiram com os movimentos migratórios da segunda metade do século XX, ocorridos no Brasil, a partir do Nordeste para o Sul. Nesse quadro de incomunicabilidades, escrever uma carta para um ente querido era a única forma de se agarrar às raízes perdidas.

Para Central do Brasil, na origem da nossa formação como nação, faltou-nos a dádiva da irreverência política.

Sem perspectivas de futuro para um país que até hoje não sabe o que quer para o seu povo, Central do Brasil nos leva de volta ao passado. A saudade do pai morto (origem), por Dora, e a obsessão por conhecer o pai vivo (raiz), por Josué, atestam um saudosismo que preenche a falta de perspectivas de um futuro promissor. Só que nesta busca por um significado de vida — o reencontro com o passado —, Dora e Josué se envolvem, pelos caminhos da “terra brasilis”, com pequenas trapaças e roubos, comportamentos estes que traduzem a conveniência moral da alma brasileira.

E aqui nós entramos numa questão falsamente cultural. Locupletar-se com a corrupção e a desonestidade, esses pequenos movimentos imorais do dia a dia, como uma pretensa atitude de revolta, de contestação, de inconformismo, faz com que nos tornamos cúmplices de históricos erros morais. Na origem da nossa formação como nação, faltou-nos a dádiva da irreverência política, que suprimos com a inútil irreverência moral. Essa irreverência inócua — o filme nos mostra sutilmente — é a forma de ser do brasileiro, que ainda se ressente de não ter morada em seu próprio país.

 

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