Roberto Gerin

Resenha Cidade de Deus, por Roberto Gerin

O PROTAGONISMO DA VIOLÊNCIA COTIDIANA

É com orgulho por este grande momento do cinema brasileiro que devemos assistir a CIDADE DE DEUS (130’), direção de Fernando Meireles, Brasil (2002). Não cabe outro sentimento. À medida que o filme se desenrola diante de nossos olhos, vamos tendo a certeza de estar apreciando o que há de melhor na produção cinematográfica do país. O roteiro, a direção, a fotografia, o grande elenco e, para deixar tudo redondinho, no ritmo exato, a edição. Portanto, esta é a primeira razão para assistirmos a Cidade de Deus: ficha técnica impecável. Mas há outras razões. E uma delas é incontestável. Nenhum outro cinema, só o nosso, tem a capacidade (e a missão) de escancarar o Brasil.

A favela Cidade de Deus transformou-se no doloroso símbolo da violência sem limites.

O que impacta em Cidade de Deus é vermos retratada na tela uma realidade quase íntima de nós mesmos: o Brasil violento que nos assusta cotidianamente. E mesmo que estejamos morando a mil quilômetros de distância do Rio de Janeiro, a impressão que nos fica é a de que os tiros ecoam debaixo de nossas janelas. A violência é um componente da nossa civilização, e a favela Cidade de Deus é apenas mais um triste capítulo dessa tragédia.

A favela, na década de 1980, transformara-se no doloroso símbolo da violência sem limites. A vida passa a ser um atributo meramente material, desprovida de toda sua essência divina. A ganância pelo poder vai triturando vidas ao longo do caminho, sem que nada se possa fazer. Passamos quase a implorar que o serviço público, na decisão do Estado e na ação da Polícia, venha dar um basta na barbárie. Entretanto, se ainda temos alguma esperança no papel do Estado como agente preparado para erradicar a violência, ledo engano. Ao assistirmos a Cidade de Deus, esta convicção cai, crivada de balas, por terra.

O crime é a única saída, mesmo que passageira, para a conquista do sucesso.

A narrativa é construída a partir do olhar do protagonista-narrador Buscapé (Alexandre Rodrigues), o menino que cresce na comunidade Cidade de Deus e vai presenciando, com sensibilidade, a transformação de um abrigo de itinerantes sem teto em um ninho de violência e dor. Tudo começa nos anos sessenta, início do assentamento Cidade de Deus, na periferia de um Rio de Janeiro que precisava expandir seu território para acolher os milhares que iam chegando à cidade maravilhosa. Eram os tempos de intenso movimento migratório, principalmente nas décadas de 1950 e 1960. Junto com o crescimento da favela veio o crime, organizado por grupos que vão impondo o seu domínio através da violência a toda prova.

A maioria são jovens — marginais ao mercado de trabalho formal — que viam nos pequenos roubos, depois no tráfico de drogas, a oportunidade de ascensão social fácil e rápida. E o sentido de ascensão social para eles era a manutenção do poder sobre a favela e a capacidade de consumir o que desejavam: carros, joias e mulheres. Portanto, uma perspectiva de encaixe socioeconômico muito limitada. Sem uma estrutura funcional cidadã que os encaminhasse para a vida produtiva, não havia outra saída para a glória, mesmo que passageira, senão o crime.

O vale tudo, o poder como fonte de autopromoção e o desvio moral são a tônica festiva de Cidade de Deus.

O Trio Ternura, ainda nos anos 1960, apresentado nas figuras de Marreco (Renato de Souza), Cabeleira (Jonathan Haagensen) e Alicate (Jefechander Suplino), representa o crime incipiente, sem objetivos precisos, com uma leve tendência a copiar o espírito de Robin Hood. Levavam em consideração as dificuldades da comunidade e por ela lutavam, em troco, evidente, de proteção.

Mas a segunda geração, cuja trajetória ocupa a maior parte do filme, moleques que assistiam com admiração às peripécias do extinto Trio Ternura, serão os que, na década seguinte, vão levar o crime às últimas consequências. O vale tudo, o poder como fonte de autopromoção, e o desvio moral, que logo desembocaria na amoralidade, são a tônica festiva de Cidade de Deus.

O roteiro se transforma, desde cedo, no grande trunfo de Cidade de Deus.

O outrora Dadinho (Douglas Silva), o menino precocemente perverso, irmão menor de Cabeleira, um dos Trio Ternura, é rapidamente absorvido pelos fáceis encantos do crime. Sua ambição, desde cedo, é ser dono da comunidade Cidade de Deus. Na base da bala, toma todos os pontos de venda de drogas instalados na favela, menos um, o do Cenoura (Matheus Nachtergaele), amigo do braço direito de Dadinho, Bené (Phellipe Haagensen). Dadinho, agora crescido, troca o apelido para Zé Pequeno (Leandro Firmino), numa clara atitude de autoconsciência de sua condição de jovem de baixa estatura, negro e nada belo.

Para se tornar definitivamente grande e poderoso, falta tomar o ponto do Cenoura, adversário à sua altura, traficante que se insere na comunidade mais pela simpatia do que pelo terror. Com a morte de Bené — numa sequência belíssima de cenas —, Dadinho está livre para conquistar o seu império. Está armado, assim, o último e mais violento confronto. Zé Pequeno versus Cenoura.

A narrativa flui, sem pontos cegos.

O roteiro, baseado no romance homônimo de Paulo Lins, lançado, com boa repercussão, em 1997, acabou sendo um dos grandes trunfos para o sucesso de Cidade de Deus. É sabido que o roteiro passou por muitos tratamentos, até chegar ao décimo segundo, o escolhido para ser utilizado nas filmagens. Este esforço criativo para construir uma história real adaptada à linguagem do cinema prova que, se não se pode prever o sucesso, pode-se, a partir de um trabalho bem planejado, almejar um resultado artístico que deixe o produto bem perto do reconhecimento público. Tanto é verdade que, lido o roteiro, os produtores não tiveram dúvida do seu potencial. Para um grande filme é importante que se tenha em mãos um grande roteiro.

Neste sentido, o roteiro de Cidade de Deus nos apresenta uma facilidade e uma ousadia. A facilidade está por conta de a trama se apoiar na eficiente técnica do protagonista-narrador. Para fins de clareza e ritmo, em Cidade de Deus esta escolha narrativa foi fundamental. A própria construção da personagem Buscapé, jovem sensível, observador, morador da favela, que luta para fugir à criminalidade, vai facilitar, como testemunha ocular dos acontecimentos, que se coloque o espectador em contato íntimo com o que está ocorrendo diante de seus olhos. A narrativa flui, sem pontos cegos.

Cidade de Deus trabalhou com um elenco amador, tirado da realidade que tão bem conheciam — as próprias favelas.

E a ousadia fica por conta da tessitura da trama. São várias narrativas que se convivem de forma paralela, apoiadas sempre em uma personagem central. Portanto, são várias personagens para várias narrativas. E são narrativas que se encontram pelos becos da favela e vão se desdobramento em novos conflitos. E dentro dessa sequência linear surgem pequenos núcleos de cenas que se atrasam ou se adiantam no tempo, com a proposta de trazer ao espectador informações essenciais para o entendimento da trama. Portanto, tudo o que é essencial é narrado. Na velocidade das imagens e na precisão dos cortes da edição.

Para finalizar, não podemos deixar de falar de outra ousadia: a produção do elenco. Optou-se por contratar um elenco amador, moradores de favelas, que nunca tinham estado diante de uma câmera. Fugir dos nomes consagrados — a exceção ficou por conta de Matheus Nachtergeale —, alheios à realidade das favelas, foi o grande acerto. Nada de teatralidade, nada de técnicas invasivas de preparação de elenco. O que importava era a verossimilhança, o representar o mundo real em que estavam inseridos, sem que as emoções e os diálogos tivessem uma prévia e exaustiva construção teatral.

Precisamos do cinema nacional para discutir nossa realidade.

Neste ponto, o acerto foi brutal. Se a algum espectador interessar, remetemos ao documentário Cidade de Deus – Dez Anos Depois (68’). A partir deste documentário, temos uma clara ideia da ousadia na seleção e na preparação do elenco: meninos de favela que de repente se veem retratados, por eles mesmos, na tela. E tudo é tão real que, dez anos depois, a grande maioria continua na insana luta para se inserir no mercado produtivo. E mais. Ficamos sabendo que a quase totalidade do elenco, na sua maioria negros, não conseguiram espaço no mundo artístico. Esse é o grande problema de um país em eterno desequilíbrio, em que não há lugar para todos. Principalmente para os pretos.

Em suma. Cidade de Deus é um filme que ficará para a história do cinema brasileiro como uma de nossas grandes inspirações. E nos deixa um legado. O cinema brasileiro poderia receber muito mais apoio, pois, os talentos e forças criativas estão aí, por toda parte, à espera de aportes financeiros para colocar seus projetos em prática. E mais do que isso. Precisamos do cinema nacional para discutir nossa realidade. Realidade que vivenciamos no nosso dia a dia, mas que só o cinema, retratando-a nas telas, nos dá a real dimensão do mundo em que vivemos. E, de quebra, ao transformar nosso cotidiano em arte, estamos construindo cultura.

 

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