Dogville
QUANDO A MALDADE SE TORNA UM BEM COMUM
DOGVILLE, (178’), direção de Lars Von Trier, Dinamarca/Suécia/EUA (2003), quebra com alguns paradigmas a que estamos acostumados quando se trata de concepção de cenários cinematográficos. Essa é uma das surpresas do filme. Mas não a mais importante.
Dogville é uma cidade. Até aí tudo bem. Só que é uma cidade desse tamanho — minúscula. Contam-se nos dedos os habitantes. Quinze adultos e sete crianças. Uma cidade quase invisível, perdida nas montanhas, em algum lugar dos Estados Unidos. Não tem xerife, não tem prefeitura, hospital, escola; no máximo, uma igreja, representada cenicamente apenas pelo topo do campanário. O que há são casas, e poucas. E sem paredes. Que são traçadas por giz. As portas existem apenas na sonoplastia, quando os trincos são abertos ou fechados. Até o cachorro, Moisés, é desenhado a giz e só vive na sonoplastia de seus latidos. As tomadas de câmeras envolvem toda a cidade lá de cima, de onde o espectador poderá bisbilhotar o interior de cada residência. Aliás, enquanto a câmera passeia pela rua principal, focando alguma cena, podemos notar, em volta e ao fundo, os interiores dos lares e o que neles acontece. Inclusive o sexo. Diante de inusitado cenário cinematográfico, o que podemos esperar desse ousado Dogville?
A vida pacata de Dogville começa a se alterar com a chegada de uma bela e misteriosa mulher.
A conclusão parece óbvia. Trata-se de teatro a céu aberto. Daí o propósito de ser Dogville tão minúscula. A cidade tem que caber num palco. No caso, num enorme galpão, na Dinamarca, onde o filme foi rodado. Um espetáculo a que podemos assistir em casa (ou nos cinemas) e sermos afetados pelas mesmas emoções a que estaríamos expostos caso estivéssemos sentados numa poltrona de teatro. Esta é a grande sacada de Lars Von Trier. Ele tem um propósito. Mostrar, a conta-gotas, os horrores humanos. Para isso, utiliza-se de recursos teatrais com o objetivo de trazer o público para bem pertinho do cotidiano da cidade. O público imerso na sua triste intimidade.
Nesse sentido, a câmera, totalmente livre, nos ajudará a testemunhar a terrível construção da narrativa. Esse é o jogo de onipresença que se estabelece entre o espectador, que tudo vê, e as personagens, que vivem presas a um cotidiano que as insensibiliza, tornando-as cegas às suas míseras condições. Resta aos pobres habitantes se enxergarem por meio de seu guru, o jovem Tom Edison (Paul Bettany). Ele, ao criar uma semântica filosófica confusa, nos leva à beira do absurdo. Por sorte, quem salva o espectador dessa confusão é o narrador, figura essencial no desenrolar da narrativa. É ele que sistematicamente interfere na condução da trama para nos mostrar como a mente humana funciona diante de situações de ignorância ética e desprezo moral.
Tom levará Grace ao inferno, permitindo e compactuando com os comportamentos imorais dos habitantes de Dogville.
A vida pacata de Dogville começa a se alterar com a chegada de uma bela e misteriosa mulher, Grace Margaret Mulligan, encarnada na beleza implacável de Nicole Kidman. Sabe-se que Grace chegara a Dogville fugindo de tiros ecoados naquela noite, montanha abaixo, e ouvidos por Tom Edison — jovem escritor que pretende escrever um livro, mas que, no momento, está mergulhado na dura tarefa de construir o que ele chama de “rearmamento moral”. No entanto, é com base em seus comportamentos de líder intelectual junto à comunidade, exercendo uma liderança titubeante, frouxa e covarde, que Dogville encontrará seu ritmo, seu desregramento moral, sua evolução dramática e sua explosão trágica.
Tom Edison é o agente do mal. Acompanhado de perto pelo onipresente narrador, ele levará Grace ao inferno, permitindo e compactuando com os comportamentos imorais dos habitantes de Dogville. Tom teria uma escolha, com a qual todos se salvariam. Mas ele é fraco e esconde sua fraqueza na omissão, na arrogância e na luxúria. Deixa que Grace, por quem está apaixonado, seja lentamente entregue aos lobos.
Estabelece-se, assim, o vínculo perverso entre Grace e Dogville.
A estrutura narrativa se divide em prólogo e nove capítulos. O prólogo é utilizado para apresentar ao espectador a cidade de Dogville e seus habitantes. A partir do primeiro capítulo, vamos presenciar a evolução traumática do convívio de Grace com a cidade. Naquela mesma noite, logo após a chegada de Grace, entram pela rua principal alguns carros, ao estilo dos anos 1930, procurando pela fugitiva. São gângsteres, logo se percebe, e agora fica claro para Tom de quem ela está fugindo. A partir desse fato, a motivação narrativa de Dogville torna-se óbvia. Em troca de acolhimento por parte da pacata cidade, assustada e apreensiva com a inesperada visita dos gângsteres, Grace é obrigada a se submeter às exigências de ter que prestar serviços domésticos de casa em casa, dia após dia. Estabelece-se, assim, o vínculo perverso entre Grace e Dogville.
No entanto, a cada visita da polícia à procura da fugitiva, a tensão aumenta. E aumenta o jogo de barganhas — eufemismo para a palavra “maldade”. Eis a proposta existencial do filme. Mostrar como o poder induz o ser humano a romper os limites da ética e da moral. Cada habitante de Dogville se transforma em um vulcão em erupção. O espectador será testemunho involuntário da maldade que irrompe do filme, tão asquerosa, a ponto de sermos levados a nos perguntar se é assim mesmo que somos.
Ele é apenas um punhado de ossos despreparados para viver.
E parece ser esse o ensinamento. Quando abrimos caminho para o mal, seja com nossa ação ou com nossa omissão, tornamo-nos cúmplices dele. Esse é o desumano horror que nos ameaça. É quando adulteramos o indivíduo como entidade íntegra e inoculamos nele uma percepção inútil de certo e errado. Dogville nos mostra essa situação com toda sua eloquência cênica.
Em suma. Caso o espectador queira se aprofundar, por meio da arte, nessa realidade tão ao nosso alcance (só olharmos à nossa volta), indicamos uma peça de teatro, de Friedrich Dürrenmatt: A Visita da Velha Senhora (1956), texto teatral com o qual Dogville divide muitas semelhanças. Ambas as obras nos ensinam o que é assumir atitudes de maldade como padrão de convivência aceitável. É quando não existe mais a humanidade viva, apenas a sua carcaça. É que o homem, já morto, se antecipou à morte de si mesmo. Ele não é mais uma entidade espiritual. É apenas um punhado de ossos despreparados para viver. É nesse terreno árido, escondido nos rincões montanhosos, que o trágico anuncia a sua chegada.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.
Vi o filme há anos, e nunca o esqueci, de tão marcante em todos os aspectos.
Agora, após essa monumental resenha, quero revê-lo.
Parabéns e obrigada!