Roberto Gerin

Resenha Green Book Roberto Gerin

UMA HISTÓRIA VERDE TRISTE

Não existe na indústria cinematográfica cartão de visita mais vistoso do que o Oscar de melhor filme. GREEN BOOK (130’), do diretor Peter Farrelly, EUA (2018), tem esse cartão. Levou a estatueta, em 2019. Um dos bons indícios de que Green Book agrada são os aplausos que tem recebido ao final de algumas sessões de cinema. Vemos o espectador torcendo para que tudo dê certo e termine em mais uma inesquecível história de amizade, neste caso, entre um pianista negro e seu motorista branco. É um filme sobre o racismo. Nos Estados Unidos. Em plena década de 1960. Racismo, sabemos, é temática recorrente em Hollywood. Sempre rendeu bons filmes. E continuará rendendo, já que esta chaga social e suas tristes ramificações são um tema inesgotável. E doloroso, porque nos traz a percepção de que atitudes racistas nunca deixarão de existir. E de fato parece ser difícil extirpá-las, uma vez que o preconceito está atrelado a movimentos que têm por base a maldade humana. Quase que faz parte da genética. Mas o diretor Peter Farrelly, bem a seu estilo, nos salva de toda e qualquer angústia. Ele foge às dores e toma, de forma segura, a direção do cômico. O público, então, poderá rir. E ao final, aplaudir.

O que chama a atenção em Green Book é a ousadia da narrativa. Ela apresenta um motorista branco conduzindo um pianista negro pelas cidades do sul dos Estados Unidos. É querer briga! E esta parece ser a proposta do filme. Tanto é verdade que o pianista seleciona um sujeito truculento, pau pra toda obra, para ser seu motorista e guarda-costas. Se o norte dos Estados Unidos é mais tolerante à presença do negro, vamos para o sul, o velho e derrotado sul da outrora Guerra da Secessão! Lá eles não escondem a intolerância. Lá eles segregam. Lá eles determinam qual é o lugar do negro. O título do filme faz referência às normas compiladas que definem como os afro-descendentes devem se comportar por aquelas bandas. Que restaurantes frequentar, em que hotéis dormir. É o livro verde, o terrível Green Book. Portanto, descer para o sul, sendo conduzido por um motorista branco, foi a ousadia do negro. Uma ousadia e tanto, diga-se. O que nos leva a ficar esperando por um filme chocante, bárbaro e único. No entanto, a ousadia se transforma em armadilha quando o filme foge do trágico e envereda para o humor. O que leva o roteiro, a nosso ver, a tropeçar nas próprias pernas.

Donald Shirley foi um pianista americano, de origem jamaicana, um virtuose do piano que fez muito sucesso nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, mas que continuou ativo como músico nos anos seguintes, até vir a falecer, em 2013. É inquestionável a importância deste homem no mundo da música clássica, ainda mais sendo um negro se apoderando de um instrumento tipicamente branco e europeu, o piano. Não é pouca coisa. Seria ótimo se o filme tivesse dissecado este desafio. Mas o objetivo é outro. Fazer um recorte racista da turnê de Don Shirley pelo sul dos Estados Unidos, tendo Tony Vallelonga como seu motorista e protetor. Portanto, distanciando-se do negro, o filme passa a tratar de outra questão, mais divertida. Deixa falar e agir o truculento e superficial, mas simpático e engraçado homem branco.

O ítalo-americano Tony Vallelonga, interpretado por Viggo Mortensen, trabalhava como segurança em uma casa noturna, no centro de Nova Iorque, que, por sinal, chamava-se Copacabana. O negócio fechou para reforma e Tony fica temporariamente desempregado. E assim o roteiro prepara nosso brucutu para ser contratado pelo refinado pianista Don Shirley (Mahershala Ali) para uma turnê de oito semanas pelo sul dos Estados Unidos. Trafegam de cidade em cidade, o pianista cumpre a agenda musical, e, como é de se esperar, logo surgirá algum problema relacionado ao racismo. É a hora de Tony Vallelonga entrar em ação e impor a justiça.

Independente de ter merecido ou não ganhar o Oscar, Green Book é um filme que vale a pena ser visto. Basta não criar a expectativa de que encontrará discussões complexas nesta delicada questão da segregação racial. É apenas um filme bem feito, que usa uma temática espinhosa para criar situações de riso, construindo, com isso, um roteiro, eis a armadilha, convulsivamente episódico. Fica claro que o filme não tem pretensão nenhuma de ir a algum lugar. E aqui reside sua honestidade narrativa.

Para finalizar, vamos dar uma rápida olhada no arco da personagem Tony Vallelonga. O arco é definido pela trajetória da personagem ao longo da narrativa, que é quando ela começa de um jeito e termina de outro, geralmente transformada. Para melhor. Pois, se analisarmos esta trajetória, vamos ver um Tony Vallelonga bem no início do filme jogando no lixo, com nojo, os dois copos usados por dois negros na cozinha da sua casa. E ao chegarmos ao final do filme, vamos ver o agora amável Tony recebendo na sala da sua casa, em noite de natal, de braços abertos, o agora amigo e solitário negro, o pianista Don Shirley. Podemos nos perguntar a razão de tamanha transformação. O filme nos sugere a resposta. A de que o homem branco é, definitivamente, um cara bacana. Pena que ser bacana não é o suficiente para ajudar a reverter a triste chaga social do racismo que assola os rincões abastados (ou não) mundo afora. Para mudar a lógica do racismo teria que mudar o roteiro do filme. Não é possível, o filme já está pronto. E ganhou o Oscar.

 

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