Roberto Gerin

Kramer vs. Kramer

QUAIS SÃO AS NOSSAS PRIORIDADES DE VIDA?

Hollywood não demonstra o menor constrangimento em recorrer a receitas de bolo para desenhar os contornos narrativos dos seus filmes. Afinal, elas são infalíveis e dão muito dinheiro. E se estivermos falando daquela receita bem especial, caprichada, feita com ingredientes bem ao gosto do espectador, então o sucesso estará garantido. Foi o que aconteceu com o filme KRAMER VS. KRAMER (105’), direção de Robert Benton, EUA (1979), vencedor de vários óscares, entre eles o de Melhor Filme e de Melhor Ator para o incomparável Dustin Hoffman. Amparado pelo sucesso imediato, Kramer vs. Kramer abateu, um a um, seus principais concorrentes ao óscar. E depois de mais de quarenta anos de sua estreia, ele ainda hoje conserva o mesmo sabor especial. Uma receita de bolo que quase virou um clássico.

Não resta dúvida que Kramer vs. Kramer segue à risca a receita de sucesso dos filmes hollywoodianos. A preocupação com a bilheteria não é um pecado quando se assume que o cinema não passa de mais uma indústria dentre as tantas que sustentam a ganância do capitalismo. Ironias à parte, Kramer vs. Kramer toca numa realidade que é muito comum em sociedades capitalistas. A busca incontrolável pelo lucro, em um cenário extremamente competitivo, acaba distorcendo a ideia do que é ser um indivíduo na sua plenitude humana. Ao nos transformar em uma máquina de fazer dinheiro, nos distanciamos de nós mesmos. Perdemos vínculos cotidianos com as pessoas que amamos, desprezando rotinas que privilegiam a simplicidade. Aquelas receitinhas básicas de vida que a ganância pelo lucro nos impede de degustar.

Como todo drama romântico, Kramer vs. Kramer também traz sua lição de moral.

Ted Kramer é um destes gananciosos por conquistar posição e poder na indústria do marketing. Dá pouca atenção à esposa e ao filho, que ele ama, mas que são peças secundárias no seu cotidiano voltado inteiramente para a empresa em que trabalha. A certa altura, a esposa, de saco cheio, o abandona. Aliás, abandona marido e filho, por entender que a crise do casamento está nela e não nas atitudes egoístas do marido. Ela se condena a ir em busca de si mesma, e para isso tem que deixar a família para trás.

Ted Kramer agora terá que se voltar para os cuidados do filho. Preparar o café da manhã, levar o garoto para a escola e, à noite, colocá-lo na cama. Mas logo ficamos sabendo que Ted mostra total inabilidade em lidar com coisas tão simples, mas cercadas — ele vai descobrindo — do mais genuíno prazer. As prioridades, aos poucos, vão se invertendo.

Após o empurrão inicial para que a narrativa ande por si só — a mãe que vai embora e deixa o filho aos cuidados do pai —, vem a cena icônica, em que pai e filho, na cozinha, tentam fazer rabanada, o prato preferido do garotinho. O desastre é total. E este desastre é apenas o ponto de partida para a construção do arco de transformação da personagem Ted. Sim. O filme singelamente fala da transformação de um ser humano que sai de uma condição de incompletude e infelicidade para o reencontro com sua essência, cuja realização está no convívio com a família e não na insana busca pelo poder.

Armada a situação dramática, cabe ao filme colocar em prática, e com total habilidade, a sua receita de bolo. Poucos filmes talvez tenham desenhado um arco de transformação com tanta perfeição quanto Kramer vs. Kramer, o que se confirma na penúltima cena, quando pai e filho estão na cozinha fazendo a rabanada. A rabanada é feita com tanta naturalidade e companheirismo que chega a nos comover.

Kramer vs. Kramer apresenta contradições conceituais que o fragilizam.

A transformação de Ted Kramer reflete a transformação de Joanna Kramer — representada pela sempre eficiente Meryl Streep, vencedora de vários prêmios por esta atuação. Mas não nos esqueçamos de uma coisa. Para que a família seja perfeita e viável, todos têm que se transformar. E aqui voltamos a tecer mais um elogio ao filme. O seu final. Ele é esplendoroso. Porque trabalha com a elipse, que é quando o diretor transfere o fecho da cena para fora do foco da câmera. Ou arma uma situação de desfecho, deixando as conclusões a cargo do espectador.

Quando Joanna, à porta do elevador, diz a Ted que a casa do filho Billy “é aqui”, quer dizer, morando com Ted, ela simplesmente está dizendo que ali também é a casa dela. Não há a reconciliação explícita, que seria o desfecho das transformações, mas, ao se fechar a porta do elevador, antes do “The End”, o espectador estará convencido de ter assistido a um belo drama romântico com final feliz. E como todo drama romântico, este também traz sua lição de moral. Temos que saber exatamente quais são as nossas verdadeiras prioridades. Serão elas que garantirão nosso equilíbrio emocional vida afora.

Vale ressaltar a atuação do ator mirim Justin Henry no papel de Billy Kramer. Ele entra em cena com a naturalidade de quem sabe o que tem que fazer. Acreditamos que a química de Justin com Dustin Hoffman veio dar o equilíbrio cênico necessário para que a verossimilhança das cenas não ficasse comprometida. Lembra, em tons de emoção, o chapliniano filme O Garoto, em que, na mesma comovente eficiência, o ator mirim Jackie Coogan contracena com Charlie Chaplin com a desenvoltura de um veterano.

Dois fatores concorrem para salvar o filme do desastre.

Antes de encerrar, cabe justificar a declaração feita no final do primeiro parágrafo desta resenha: a de que o filme quase se transformou em um clássico. Por que quase? Porque Kramer vs. Kramer apresenta contradições conceituais que o fragilizam.

O pai Ted Kramer é um homem que está se desdobrando para cuidar do filho, a ponto de perder o poderoso emprego. A mãe Joanna é uma mulher que simplesmente abandona o filho, sem uma razão que vá além de uma crise existencial. Esta contraposição de papéis coloca o filme numa posição delicada. Faz com que o roteiro caia numa perigosa armadilha. O espectador tem que escolher entre torcer pelo pai ou pela mãe. Pelo marido ou pela esposa. Definir quem é o mocinho e quem é o vilão. E aí o bicho pega.

Veja o que acontece. O pai, até então ausente e relapso, e o marido, até então também ausente e relapso, passa a ser um pai maravilhoso e um marido injustamente abandonado. E a mãe acaba sendo vilanizada, sem que haja uma justificativa psicológica e moral que venha socorrê-la. Afinal, como assim uma mãe abandonar um filho?!

Kramer vs. Kramer cumpriu à risca sua função de acariciar os bolsos de Hollywood.

Este imbróglio narrativo, confundindo as verdades de um e outro, acaba comprometendo a verossimilhança da própria narrativa. Fica-nos a impressão de que o afastamento da mãe, que vai embora sem quê nem pra quê — há razões, mas elas são um tanto frágeis —, é apenas um titubeante pretexto para que o filme conte a comovente história de um pai e de um filho que vão se ajustando numa bela relação de companheirismo. Cabe à mulher assumir a responsabilidade moral de ter se afastado para dar passagem ao núcleo narrativo principal.

Dois fatores concorrem para salvar o filme do desastre. A atuação magnífica dos atores, em particular de Meryl Streep, que construiu uma Joanna Kramer madura, autoconsciente e justa, fazendo com que ela escapasse do julgamento moral do espectador. E segundo, a cena do tribunal, com a disputa pela guarda de Billy. Prevaleceu o direito da mãe, um desfecho natural, mas que soa compensatório para o sacrifício a que foi submetida. Joanna pode ter ido embora, mas a justiça continua reconhecendo nela a mãe.

Em suma. Pelo sucesso de bilheteria, pelos prêmios, inclusive superando injustamente o fabuloso Apocalypse Now na disputa pelo Oscar de Melhor Filme, pela sua temática existencial, Kramer vs. Kramer cumpriu à risca sua função de acariciar os bolsos de Hollywood. Uma receita perfeita. Mas que, por pouco, não passa do ponto.

 

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