Roberto Gerin

Resenha Ladrões de Bicicleta Roberto Gerin

MALDITO DIA QUE EU NASCI!

Poucos filmes atacam as questões socioeconômicas com tanta virulência quanto o magnífico LADRÕES DE BICICLETA (93’). Com direção de Vittorio De Sica, produção italiana de 1948, o filme fotografa com precisão a angustiante luta de legiões de desempregados pela sobrevivência em um país devastado pela guerra. É o desespero para conseguir um emprego que nunca vem. Enquanto a necessidade de trazer para casa o pão nosso de cada dia se transforma em quase flagelo, levando o homem ao seu limite moral, presenciamos o retrato infame das inconsequências políticas que mergulharam a Europa em profunda desorganização social e econômica. O filme é um hino singelo ao ser humano exposto à própria sorte, num mundo em que é preciso marginalizar os valores em troca de um simples pedaço de pão. As misérias não se equivalem, elas se complementam no silêncio e na dor de cada um e de cada família. Ladrões de Bicicleta apenas traduz essa triste trajetória do homem na sua eterna busca por um confortável lugar ao sol. O problema é que alguém sempre irá roubar-lhe o sol. E com ele, a esperança.

Um humilde trabalhador, Antônio Ricci (Lamberto Maggiorani), após dois anos de tentativas, finalmente consegue um emprego como colador de cartazes. Mas há uma condição para que seja contratado pela empresa. Possuir uma bicicleta, o instrumento de trabalho que possibilitará a ele percorrer a cidade de Roma colando cartazes. O que a princípio parecia ser a felicidade de quem encontrara o tão almejado ganha-pão, transforma-se em pesadelo. Antonio não tem bicicleta. Aliás, tem. Mas ela fora empenhada em troca de dinheiro para alimentar a família. E aí entra a esposa Maria (Lianella Carell), que não perde tempo. Vende os lençóis, enxoval do casamento, e com o dinheiro resgata a bicicleta. Antônio é contratado, e no dia seguinte começa a trabalhar. Mas o inesperado acontece já no primeiro dia de trabalho. Sua bicicleta é roubada.

Roubar a bicicleta significa para Antônio roubar-lhe o emprego.

Cabe aqui ressaltar a cena do casal, Antônio e Maria (nomes comuns em sua representação social), no guichê da penhora, quando recebem o dinheiro dos lençóis. A felicidade que se lhes estampa no rosto é o sinal de recomeço, sinal de que os efeitos destrutivos da guerra finalmente ficariam para trás. Na sequência da cena, a câmera registra o empregado da casa de penhor subindo na imensa estante abarrotada de lençóis. É a imagem acabada do descalabro financeiro que pesa sobre as famílias. São obrigadas, em troca de alimento, a penhorar seus bens e suas memórias.

Uma das obras primas do neorrealismo italiano, Ladrões de Bicicleta foi produzido a baixo custo, bancado pelo próprio roteirista e diretor Vittorio de Sica. Ele utiliza atores não profissionais, e a maioria das tomadas são externas, aproveitando a paisagem urbana de periferia, portanto, longe do glamour turístico da suntuosa arquitetura romana. E o roteiro é tão simples quanto a história do dia a dia de alguém agoniado à procura da sua bicicleta roubada. Roubar a bicicleta significa para Antônio roubar-lhe o emprego. Portanto, o fim.

O filme acabou não empolgando os espectadores quando do seu lançamento, em 24 de novembro de 1948. Quase um fracasso de bilheteria. Entende-se. O filme retratava a realidade atual. E as pessoas provável não estavam interessadas em ver na tela o que sofriam na vida real. No entanto, o filme viria a registrar seu nome na história do cinema com a premiação do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1950. Este fato daria impulso à bem-sucedida carreira do filme, festejado por gerações que ainda hoje se comovem com a simplicidade e a humanidade daquele homem na busca desesperada por sua bicicleta.

Mas como encontrar a bicicleta na feira de desmanche, em meio a um vendaval de peças iguais? A cena do filho Bruno (Enzo Staiola) procurando em meio a dezenas de buzinas sobre a bancada a que poderia ser a buzina da bicicleta do pai traduz essa impossibilidade. Não há mais a bicicleta modelo Fides 1935. Ela se perdeu em meio às quinquilharias. Nesse momento, a roda da desesperança dá mais um giro, apertando os corações e aumentando a voltagem do desespero.

Em Ladrões de Bicicleta, destrói-se não só a esperança. Vão embora também todos os pilares morais que sustentaram até então a vida decente de Antônio.

Podemos facilmente transportar esta contundente história para outras épocas e para outras manifestações artísticas sobre o tema. Toda história que se quer contada sobre um contexto social tem que ser individualizada. Alguém terá que representar a desgraça. Precisamos conhecer a angústia de um que espelhe a angústia coletiva. Dentro da literatura brasileira, talvez caiba mencionar o fabuloso romance modernista do gaúcho Dyonélio Machado, Os Ratos (1935). A personagem Naziazeno passa desesperadas vinte e quatro horas na tentativa de arranjar dinheiro para saldar sua dívida com o leiteiro, sob pena de este cortar-lhe o suprimento diário de leite.

E se quisermos nos aproximar da realidade atual, basta nos debruçarmos sobre os entregadores de aplicativos, com suas bicicletas e suas velhas motocicletas rasgando as ruas das grandes cidades para levar as encomendas até seus destinatários. Quem não utilizou este serviço? Quem por acaso não viu pelas ruas uma destas motocicletas estirada ao chão, anunciando o triste destino do trabalhador avulso? Não cabe aqui nos atermos às vicissitudes que atingem estes milhares de Antônios batalhando pelo ganha-pão de cada dia. Mas com certeza eles refletem o total desamparo socioeconômico a que são submetidos.

O homem desprovido do seu destino.

Para agravar a situação da personagem Antônio, e dar-lhe um significado de existencial humilhação, o roteiro coloca a figura do filho acompanhando o pai na sua insana via crucis. Vamos presenciar cenas delicadas de afeto, de companheirismo, mas também de raiva, até chegar à cena final, quando o filho é colocado diante da dura realidade de ter que ver o pai sendo linchado moralmente em praça pública. É o desfecho inevitável da narrativa. Coube a Antônio, em domingo chuvoso, percorrer em vão as ruas de uma Roma abatida pela guerra, por isso incapaz de acolher os seus filhos. Como tantos outros, Antônio será apenas um objeto estranho rolando pelas ruas, na velocidade de uma bolinha de fliperama. O homem desprovido do seu destino.

Em suma. Destrói-se não só a esperança. Vão embora todos os pilares morais que sustentaram até então a vida decente de Antônio. Quando a barriga ronca, a moral naufraga, deixando à tona apenas os seus destroços. E antes que se afogue de vez, ainda ecoa na tela o grito de Antônio. Maldito dia que eu nasci!

 

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