Longa Jornada Noite Adentro
Eugene O’Neill era um homem atormentado pelas malditas heranças da família O´Neill, como ele mesmo se reconhecia. Filho de um grande ator americano, Eugene se recusava, a princípio, a entrar para o teatro. Cederia após malsucedidas tentativas na sua busca por um lugar ao sol. Acometido de malária, após viagem a Honduras, entra para a escrita teatral, com trabalhos, no princípio, sem grandes pretensões, mas logo foi impondo o seu gênio e ocupando um espaço importante na dramaturgia norte-americana, tendo ganhado seu primeiro dos quatro prêmios Pulitzer ainda em 1920, aos trinta e dois anos. Jovem, portanto. E que o levaria, já em 1936, a ser o primeiro dramaturgo norte-americano a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Já cansado, prevendo dias difíceis que chegavam com a velhice, uma vez que sempre teve uma saúde frágil, ele senta diante de si mesmo para prestar contas com o seu passado. Era o ano de 1941. Desta atitude de coragem nasceu sua obra-prima, Longa Jornada Noite Adentro, tão profunda, tão verdadeira, tão confessional, que ele determinou que o texto só poderia vir a público vinte e cinco anos após a sua morte. Perguntado o porquê de tal exigência, alegou que uma das personagens ainda estava viva. Quando ele escreveu Longa Jornada Noite Adentro, das personagens reais envolvidas nesta trama dramático-familiar, só restava vivo ele próprio. Seu pai, James O’Neill, morreria em 1920; sua mãe, Ellen Quinlan, em 1922; e seu único irmão, Jamie, dez anos mais velho que Eugene, em 1923. Como se vê, num espaço de apenas três anos, sua família se desfaz. Por sorte, sua esposa, Carlotta Monterey, desobedeceria a seu pedido e em 1956, três anos depois da morte do marido – Eugene morreria de tuberculose, em 1953 -, ela permitiria a publicação e montagem deste magnífico texto, condecorado – post-mortem –, em 1957, com o que seria o quarto Pulitzer de Eugene O’Neill.
O texto transcorre em apenas um dia, no ano de 1912, e é dividido em quatro atos. Pela manhã, ao entardecer, à noitinha e, por fim, noite adentro. Não há enredo. Há apenas o cotidiano da família Tyrone.
Nestes quatro painéis, de forma progressiva, Eugene mapeia as impossibilidades de cada um dos quatro membros da família Tyrone – leia-se, O’Neill – em se encaixarem numa harmonia de desejos e sentimentos que os levassem a desfrutar uma vida em comum. É como se cada membro apontasse, ostensivamente, para uma direção que, de preferência, seria o oposto a do seu interlocutor, ressaltando a incapacidade de as personagens dividirem os mesmos espaços. Aparentemente, os diálogos não se encadeiam. Do contrário, se chocam, se esbatem, se machucam. Pequenos arranhões que se avolumam em rancores que moldam o comportamento de cada um, mas que vão, todos, dentro desta disfuncionalidade, se encontrarem num mesmo álibi: o vício.
O ponto de partida do drama gira em torno da doença de Eugene, que na peça assume o nome de Edmund, nome de seu irmão morto aos dois anos, quando Eugene O’Neill ainda não era nascido. O fenômeno dramático condutor da trama é o vício da mãe que, sensível e frágil, vê-se presa à morfina para amenizar suas dores reumáticas, situação que envergonhava a ela, decepcionava o marido, irritava o filho mais velho, Jamie, e assustava o mais novo, Edmund. Portanto, cada membro recebia o vício da mãe à sua maneira. Como também recebiam, assustados, a tuberculose de Edmund, doença quase fatal no começo do século XX. Tinham-no, pois, como futuro morto. E, por fim, permeando estas realidades, a bebida, problema central para o irmão Jamie, problema quase central para o pai, James, e um grande problema para si, Edmund. Eugene O’Neill conviveria a vida toda com o medo de se tornar um alcoólatra como o irmão. E, por fim, como consequência dessa desestruturação familiar, o texto ecoa o tempo todo o desenraizamento, o não pertencimento, a falta de um lar como referência afetiva e social da família Tyrone O’Neill. James O’Neill era um grande e promissor ator norte-americano que se entregara, por dinheiro, ao teatro comercial, obrigando-o a fazer longas turnês pelos Estados Unidos. Nas constantes viagens, arrastava a mulher e os filhos para lugares estranhos, hotéis baratos, uma vida de incertezas e nenhuma segurança afetiva e de pertencimento. Esta realidade resume o nascimento e morte do grande dramaturgo norte-americano. Eugene O´Neill nascera em um hotel e viria, sessenta e cinco anos depois, a morrer em um hotel. E esta dolorosa constatação acompanhou-o na morte.
Percebe o leitor, lendo os parágrafos acima, a mistura de nomes, reais e fictícios, Tyrone e O’Neill, ficção e realidade. Tal se deve porque assim é Longa Jornada Noite Adentro, uma autobiografia, senão fiel, mas muito próxima da ficção apresentada por Eugene em Longa Jornada Noite Adentro. E o faz sem muita maquiagem nem disfarces retóricos, inclusive nos nomes, que ele os traz da vida real.
Todos nós sabemos que o artista tem grandes parcelas de si mesmo em sua arte, mas talvez ninguém chegou tão longe quanto Eugene O’Neill na sua exposição pessoal. E isto é tão verdade que, para encerrar, faremos apenas uma observação técnica desta magnífica obra. Ao ler Longa Jornada Noite Adentro, com extrema atenção também para as rubricas, vamos perceber que estamos diante de um filme em que não há paisagens, não há mobílias, não há interiores, senão tão somente os closes dados às almas das personagens, vistas de tão perto que não podemos saber o que realmente fazem com seus braços e pernas. Cada mínimo sentimento é radiografado por este fenomenal dramaturgo que, sabemos, inaugurou o teatro moderno norte-americano. Seu ato de coragem é também sua genialidade.
Há obras que enfeixam uma vida literária, que se pode dizer definitiva, o artista se concluindo em si mesmo. É como se ele não mais pudesse ir além daquele momento de dor e inspiração. É assim que Longa Jornada Noite Adentro pode ser vista. O humano clonado em personagens. Emolduradas num retrato de família.
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