Luzes Da Cidade
O AMOR SILENCIOSO
Se alguém quiser conhecer a filmografia de Charlie Chaplin, um dos primeiros filmes a que deverá assistir, sem dúvida, é o comovente LUZES DA CIDADE (97’), EUA (1931). Nesse filme, Chaplin provavelmente conseguiu reunir todas as qualidades artísticas que fizeram dele o grande ator e diretor das primeiras décadas da história da sétima arte — tempos em que o cinema ainda era silencioso (mudo).
E começamos a falar do filme apresentando uma curiosidade. No conjunto da obra de Chaplin, Luzes da Cidade deveria ter sido o divisor de águas na transição para o cinema sonoro, já que, à época da produção do filme, finalizada em 1931, a fala dominava as telas dos cinemas mundo afora. O visual, onde a pantomima era soberana, dera lugar ao oral, em que os diálogos passaram a se sobrepor às expressões faciais e trejeitos corporais. Portanto, pergunta-se. Por que Charlie Chaplin não participou desta transição, como fizeram seus principais colegas de humor, Buster Keaton e Harold Lloyd, por exemplo?
Luzes da Cidade ocupa aquela restrita prateleira onde descansam os melhores filmes de todos os tempos.
Medo do novo? Redução de custos de produção, já que Chaplin era também produtor dos próprios filmes? Opção estética? Quais sejam as razões, o risco de permanecer mudo na tela, em plena década de 1930, era imenso. Mas não para Chaplin. A estreia do filme foi um sucesso de bilheteria. E hoje, para muitos, Luzes da Cidade ocupa aquela restrita prateleira onde descansam os melhores filmes de todos os tempos.
Luzes da Cidade começa com a inauguração de um enorme monumento em honra à “paz” e à “prosperidade” (ironia chapliniana). Ao descerrar o pano, lá está o Vagabundo tirando uma soneca nos braços da estátua, enquanto embaixo ouvem-se os sons ininteligíveis dos discursos das autoridades. Ininteligíveis, porque essa era proposta de Chaplin: continuar fazendo cinema mudo. E, já na primeira cena do filme, ele deixa isso bem claro.
De imediato, o Vagabundo se apaixona pela Florista.
No entanto, estava ali o som, e Chaplin fez questão de acusar a sua presença, como o faria ao longo de todo o filme. A hilária cena do apito engolido, provocando soluços, é um destes exemplos — o som servindo ao humor. Enxotado da cerimônia, o Vagabundo vai fazer o que de melhor ele saber fazer: vagar, sem destino, pela cidade.
O policial severo e vigilante é uma figura presente em boa parte da filmografia de Chaplin. Ao vagabundo, a lei! Portanto, fugir da polícia parece ser uma das ocupações diárias do Vagabundo. Em Luzes da Cidade, essa particularidade toma uma dimensão decisiva. A fuga do Vagabundo — o policial sequer nota sua presença — será o gatilho que conduzirá o espectador para dentro da narrativa, pois significará o encontro de Carlitos com a sua amada, numa das cenas mais bem elaboradas e sensíveis de que se tem notícia na história do cinema.
Luzes da Cidade nos convida a fantasiar uma realidade possível, mesmo sabendo que ela acontecerá apenas no plano da ficção.
Ao escapar à presença (inofensiva) do policial, o Vagabundo atravessa um carro — abrindo e fechando as portas traseiras — e se depara com uma florista vendendo flores na calçada. De imediato, apaixona-se por ela. Mas, ao perceber que a florista (Virginia Chemill), deficiente visual, confundira-o com um transeunte rico (eis a função do carro), ele é obrigado, de fininho, a se retirar de cena. Afinal, não era para ele que ela dirigia seu encanto e atenção.
Mas em Chaplin sempre existem os reencontros. Nesse sentido, a oportunidade de o Vagabundo se passar por rico e conquistar o amor da florista surgirá logo adiante. Para tanto, a trama precisa assumir seu papel vital: levar o espectador a experimentar momentos de profunda emoção. E Luzes da Cidade cumpre bem o seu papel. O filme nos convida a fantasiar uma realidade possível, mesmo sabendo que ela acontecerá apenas no plano da ficção. São momentos mágicos que só o cinema, personificado em obra de arte, pode nos oferecer.
Agradecido, o milionário jura amizade eterna a seu salvador.
Um adendo. A cena acima mencionada, em que a florista confunde o Vagabundo com um homem rico, ao assisti-la, parece-nos simples, óbvia até. No entanto, que se registre. Chaplin consumiu meses de gravações e regravações para chegar ao resultado final, tal como o conhecemos.
Mas quem é que vai possibilitar ao Vagabundo se passar por rico, para assim conquistar o amor da florista? Um milionário suicida, de quem o Vagabundo salva a vida quando o desconhecido está prestes a se atirar no rio, com uma pedra amarrada ao pescoço. Agradecido, o milionário jura amizade eterna a seu salvador. E assim começam as noitadas de pândegas dos dois amigos, momentos em que Chaplin reserva para construir, com a costumeira precisão, seu humor pantomímico.
Luzes da Cidade intensifica a ideia do herói destinado a resgatar a felicidade de alguém, mesmo que dela não venha a fazer parte.
O deleite do espectador está garantido. E mais garantido estará quando se percebe que o excêntrico milionário, livre da embriaguez, recuperando sua plena consciência, não reconhece o amigo salvador. Expulsa-o de sua casa como se fosse um indesejado estranho. Sem o amigo bêbado, é hora de o Vagabundo voltar para as ruas.
A narrativa aumenta de tensão quando o Vagabundo, já íntimo frequentador da casa da florista, descobre que a amada, por falta de pagamento do aluguel, está prestes a ser despejada. Jurando a ela (e prometendo para si mesmo) resolver a questão até o dia seguinte, Chaplin, o roteirista, mais uma vez se oferece a oportunidade para que sua personagem irradie na tela toda sua exuberância comicamente humana. Caberá mais uma vez ao herói resgatar a felicidade de alguém, mesmo que dela não venha a fazer parte.
No reencontro final de Luzes da Cidade, Charlie Chaplin nos oferece o impasse.
E chega o momento do último lance: o reencontro, muito tempo depois, entre o Vagabundo e a Florista. Curada da deficiência visual, a amada, agora, é dona de uma loja de flores. Pois, além de pagar o aluguel, o Vagabundo havia conseguido do milionário (em mais um momento de bebedeira) dinheiro para que ela fizesse a cirurgia dos olhos e recuperasse a visão. No reencontro final, em cena icônica, Charlie Chaplin nos oferece o impasse. Para que o Vagabundo continue existindo, ele terá que transformar o encontro em desencontro. Mas Chaplin encerra o filme antes, no encontro, deixando ao espectador as perguntas sobre a possibilidade daquele amor. Pelo que já sabemos, ao Vagabundo está destinada a bondade, não a felicidade.
Em Luzes da Cidade, a inserção pontual do som age como uma personagem disposta a ter alguns segundos de fama.
A qualidade artística baseada no perfeccionismo de Chaplin impulsionou seu cinema mudo até o limite. A despeito de todas as razões que levaram Chaplin a manter seu Carlitos mudo, é possível dizer que o diretor não virou totalmente as costas para o cinema sonoro. Prova disso é que poderemos ver em seus filmes, nesse, Luzes da Cidade, e no seguinte, Tempos Modernos, a inserção pontual do som agindo como uma personagem disposta a ter alguns segundos de fama. Apenas o Vagabundo continuaria eternamente mudo!
E é nessa atitude artística que reside o extremo cuidado de Chaplin com sua criatura. O Vagabundo, desde o princípio, sempre foi uma personagem eloquente, em quem a precisão exata de cada gesto tinha seu grito genial. Sob pena de desfigurar a personagem, colocando nele a voz, Chaplin preferiu deixá-la silenciosa — portanto, intacta no nosso imaginário. Foi a melhor herança que ele nos legou. Podemos até dizer que, diante de todas as personagens criadas na era do cinema silencioso, anterior à década de 1930, o eloquente Vagabundo foi o único que se deu ao luxo de continuar mudo.
Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.
[…] cinema sonoro. Essa preocupação já havia transparecido antes, em menor intensidade, em 1931, com Luzes da Cidade. E eis que agora se depara novamente com seu grande conflito: a necessidade de manter seu Vagabundo […]