Roberto Gerin

Resenha de Marrom e Amarelo, por Roberto Gerin

QUAL É MESMO A COR DA PELE?

Neste novo romance de Paulo Scott, MARROM E AMARELO, 155 pg., Ed. ALFAGUARA, somos convidados a caminhar, a passos alucinantes, por ruelas, ruas, avenidas e bairros porto-alegrenses, vendo desfilar, diante de nossos olhos, tristes imagens do cotidiano de pessoas que lutam apenas para sobreviver. E, na busca por sobrevivências, o romance nos faz percorrer as dolorosas existências submetidas às suas condições de peles negras. Transportando-nos em seu estilo fluente, de vozes múltiplas, em fluxos criativos que às vezes desconsideram até as pontuações, Paulo Scott nos brinda com este saboroso romance, escrito com a alma de quem conhece os meandros das dores raciais.

Ao trazer para as páginas de Marrom e Amarelo as discussões sobre tons de pele, Paulo Scott estrutura seu romance a partir de uma ideia que provoca polêmicas. O autor traz o colorismo para o centro da trama. Estabelece a discussão sem fim do que é ser negro, nem tão negro, praticamente branco, branco para uns, pardo para outros, a ponto de se aventar, nos gabinetes de Brasília, a ideia de delegar a um software a definição de raça. Sabe-se, de antemão, que este software irá gerar conflitos entre as vozes de bairros brancos e as vozes de bairros negros, reforçando a velha (e hipócrita) confusão de leituras raciais.

Paulo Scott inicia Marrom e Amarelo colocando a discussão do colorismo nos gabinetes de Brasília.

No entanto, Paulo Scott, parece-nos, não tem a intenção de deslindar o imbróglio. Atém-se a colocar, como protagonistas, de forma lúcida, na concepção narrativa do romance Marrom e Amarelo, dois irmãos de sangue que carregam na pele tonalidades diferentes. Uma pele é marrom (negra), a outra, amarela (branca?). Entretanto, independentemente da tonalidade, ambas escancaram o dilema do preconceito visto a partir do colorismo. Felizmente, o autor não impõe regras sobre definições de raças. Deixa que o leitor corra esse risco.

Paulo Scott inicia o romance colocando a discussão do colorismo nos gabinetes de Brasília. Alerta como a burocracia e a dominância branca tentam confundir um dos grandes avanços oficiais que tem como objetivo propiciar a ascensão social aos negros, por meio do acesso à educação superior. Falamos das providenciais e — a nosso ver — imprescindíveis cotas raciais. São elas que abrem vagas para a população negra nas universidades federais brasileiras. Ao desconfiar da catalogação dos tons de pele, está-se colocando em xeque a própria instituição da cota. Esta é a maliciosa estratégia. Deixar subtendido que, apesar das cotas, no Brasil, universidade é para filho de branco.

O que existem nas páginas de Marrom e Amarelo são apenas ecos de protestos que deixarão de ser ouvidos tão logo virarmos a próxima esquina.

Paulo Scott não constrói no irmão branco, Federico, uma personagem heroica, desbravadora de novos caminhos que levem à erradicação do racismo nos convívios da sociedade brasileira. Pelo contrário. Coloca Federico na condição de questionador da sua própria identidade negra. Ao se dar conta da cor clara da sua pele, ele se perde diante do espelho. Suas fragilidades vão se refletir na sua vida pessoal, carregada de insistentes frustrações, tanto afetivas quanto sociais. Portanto, diante de tantas incertezas pessoais, como se posicionar como gente negra que precisa lutar por espaços na perversa estrutura social criada por gente branca?

Não se trata aqui de discutir quais são os propósitos do autor em criar personalidades frágeis, não heroicas, titubeantes, até. Fica-nos a impressão de que ele apenas quer avisar o leitor de que não acenderá uma luz no fim do túnel. Paulo Scott está mais preocupado, a nosso ver, em mostrar que suas personagens são imagens reais que transitam por uma trágica realidade social de populações negras condicionadas a se entregarem passivamente à sua condição histórica de raça oprimida. O que existem nas páginas de Marrom e Amarelo são apenas ecos de protestos que deixarão de ser ouvidos tão logo virarmos a próxima esquina.

O autor assume sua escrita para mostrar que a realidade segue seu curso inexoravelmente desumano.

Ao criar em Federico a consciência de que sua pele branca esconde suas origens negras, o autor oferece a seu protagonista uma razão inevitável para lutar contra o racismo. E, como ativista, Federico acaba se tornando conhecido e respeitado, a ponto de ser convidado para ir a Brasília fazer parte da comissão que definirá que tons de pele terão direito às cotas para negros, nas universidades. Mas, como ponto de contradição, essa consciência (e ativismo) acaba sendo atrapalhada por sua natural covardia perante a necessidade de ações mais incisivas e, dentro do espectro da narrativa, heroicas, para pôr em marcha o desmonte das estruturas racistas que dão sustentação ao arcabouço social brasileiro.

Por outro lado, ao criar o perfil de Lourenço — o irmão negro — como um sujeito simpático, inserido, sem tantos problemas de convivência nos seus meios sociais, onde transita à vontade, esquivando-se habilmente dos inevitáveis embates raciais, Paulo Scott renuncia a proporcionar ao leitor a tão desejada redenção. O próprio autor tem declarado ser avesso a esse tipo de desfecho narrativo. Como fabricar uma redenção para um problema órfão de soluções a curto e médio prazo? Para sobreviver, Lourenço espertamente se insere em um esporte onde o negro é sempre bem-vindo: o basquete.

Em Marrom e Amarelo, as possibilidades de redenção são remotas.

Em suma. O autor assume sua escrita para mostrar que a realidade segue seu curso inexoravelmente desumano. O desfecho que ele escolhe para o romance cumpre essa missão. A de retratar a realidade do racismo em Porto Alegre, exibindo as violências a que são submetidos os cidadãos de pele negra. E escancara a necessidade de se estabelecerem políticas públicas honestas como um dos caminhos seguros para alterar o incestuoso desequilíbrio racial no Brasil. Para tanto, seria necessário a implantação de políticas oficiais que viessem a quebrar os legados racistas. No entanto, como bem mostra Paulo Scott, não há perspectivas a curto e, quiçá, a médio prazo. As possibilidades de redenção são remotas. Desanimadoras, até. Tanto é verdade, que Federico abandona os gabinetes de Brasília e retorna para sua Porto Alegre, para ser mais um negro a percorrer suas perigosas ruas brancas.

 

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