Roberto Gerin

Resenha Úrsula, por Roberto Gerin

UMA PUNGENTE AUTONARRATIVA

Em seu romance O ACONTECIMENTO, a escritora francesa Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura em 2022, não camufla a realidade: não esconde os lugares, as datas e as pessoas que fazem parte da trama. A autora dá ao romance a versão não-ficcional de um conturbado enredo vivido por sua personagem. Se é uma autobiografia romanceada, parece não haver dúvida. O que sobra é coragem por parte da autora em dissecar momentos dolorosos de sua vida, permitindo-nos acompanhar todos os movimentos que a levaram à decisão de abortar. Fica-nos a evidência de que ela usou a literatura para colocar as dores no seu devido lugar. E, para que a dor fosse reconhecida como o eixo da existência, Annie Ernaux se propõe a denunciar as estruturas sociais moralistas como algozes implacáveis que afligem, submetem e fragilizam a mulher. No entanto, é essa rede de perversidades que a motiva a seguir adiante. A vida podia ter sido melhor, sim. No entanto, ainda há forças para se refazer ao longo do caminho.

Tudo à volta pode machucar, pode agredir, pode anular.

Annie Ernaux não economiza imagens radiografadas em palavras cruas para descrever seus sentimentos de inominável angústia ao se colocar diante do fato consumado. Para retratar este momento, eis como ela descreve o desfecho do aborto: “Choramos silenciosamente. É uma cena sem nome, a vida e a morte ao mesmo tempo. Uma cena de sacrifício”. Esse é o acontecimento.

Fato marcante na literatura de Annie Ernaux é ela não se desgrudar dos imbróglios sociais que determinam sua vivência no mundo. Ela, como pessoa e personagem, é agente do meio, um corpo às vezes descontruído, às vezes com vontades e desejos próprios, que se move por entre estruturas rígidas, necessitando de toda cautela para não esbarrar na dor. Tudo à volta pode machucar, pode agredir, pode anular. E haverá sempre a necessidade de se superar, de vir à tona, de recomeçar. Não há como, ao se falar de dias vividos num tom de autobiografia sem complacências, não se dobrar à sinceridade e ao espanto.

O Acontecimento se transforma em um torturante périplo na procura de quem realize o aborto.

O sonho de dias melhores é um lenitivo para a desesperança. Na próxima esquina, ao virar para outra direção, pode ser que encontre mais luz, mais brilho, mais sol. Sair da penumbra é o desejo que não se apaga. O que nos surpreende é a certeza da protagonista de que só o aborto a libertará das amarras morais que a acorrentam. Vai levar para a vida a amargura da luta insana, mas, ao se sair vitoriosa, o futuro pode ser mais atrativo do que um passado de sofrimentos. Essa é nossa condição de viver: esperar que lá na frente haja o pouso feliz.

 

O fio condutor do relato de vida da protagonista se concentra na sua tentativa desesperada de realizar o aborto. Dentro desta perspectiva angustiante, a possibilidade técnica encontrada pela autora foi se distanciar no tempo. Ela se utiliza das ferramentas da memória e de escritos esparsos para compor a trajetória de angústias de uma jovem universitária de vinte anos que engravida de uma relação insegura, e que se vê, com isso, condenada aos julgamentos da família e da sociedade. Estamos falando da década de 1960, numa França sob os efeitos da ressaca cívica da ocupação nazista. A culpa ainda permeia o esgarçado tecido social, uma época que antecipa os espasmos políticos de 1968. É nesse ambiente de incertezas e opressões que a protagonista, sem muito elaborar sua decisão — mas decidida a abortar —, vai em busca da solução para o problema que se aninha em seu ventre. Fica-nos a impressão de que não é ainda o momento histórico para o rebento vir ao mundo.

Ao falar da mulher, O Acontecimento é um romance para ser lido por homens.

Portanto, O Acontecimento se transforma em um torturante périplo na procura de quem realize o aborto. Acompanhamos a personagem pelas ruas de Roeun, pelos metrôs e avenidas de Paris, na busca de quem materialize a sua decisão. Ainda um tabu — e um crime —, o aborto só podia ser realizado pelos “anjos da morte”. São mulheres que se utilizam de técnicas heterodoxas, algumas perigosas, outras agressivas ao corpo feminino, para livrar a mulher do incômodo social da gravidez. A técnica abortiva a que se submeteu a protagonista é de arrepiar os neurônios — Annie Ernaux não nos poupa de suas descrições.

Se O Acontecimento é um romance para ser lido por mulheres que se identificarão com a protagonista, mesmo não tendo passado pelas vicissitudes do aborto, é, acima de tudo, uma narrativa obrigatória para homens. Em um primeiro momento, para conhecerem os sofrimentos da maternidade indesejada, da qual, evidentemente, fazem parte; e, depois, para que se conscientizem de que a prevenção e o cuidado com a parceira são atos humanos indispensáveis numa relação, seja ela duradoura ou passageira. Virar as costas para a inesperada gravidez da parceira é um ato de indesculpável covardia. É deixar a mulher entregue à sorte de encontrar quem a ampare. E este é exatamente o núcleo existencial do romance: desamparada, Annie Ernaux radiografa cada minuto do seu solitário calvário de sofrimentos para se libertar de sua condição de grávida. Ao sair para a vida, livre do feto, há uma outra mulher, machucada, sim, mas liberta.

O Acontecimento celebra a vitória pessoal da autora.

A literatura de Annie Ernaux nos surpreende pela racionalidade cirúrgica com que ela traça a realidade em movimento, não poupando ninguém e nada, como se a autora lançasse um olhar vingativo sobre o mundo. Um mundo que lhe foi hostil, em todos os aspectos. Um ser vivente não acolhido pelos sonhos, e que teve que, primeiro, ir atrás de compreender as suas origens, e, depois, tentar se refazer em uma outra estrutura social e econômica, que lhe desse o direito de ser feliz, longe de estruturas furiosas que a agridem e a limitam como ser e como mulher. Dar o salto arriscado para o outro lado do muro social, com o sonho de ser apenas mais uma pessoa normal, foi o que a motivou a superar sua história. Eis a vitória pessoal esculpida neste pungente romance O Acontecimento.

 

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