O Estranho Que Nós Amamos
O DESEJO BATE À PORTA
Há filmes antigos que são refilmados, ou, como queira, revisitados dentro de uma nova concepção artística, sintonizados, evidente, com a época em que são produzidos. São esteticamente tão mais diferentes quanto mais distantes no tempo entre a primeira e a segunda produção. E a tentação é logo sentar-se no sofá, assistir às duas versões, a nova (2017), e a antiga (1971), e começar a fazer comparações. Pode ser esta uma tarefa difícil. Não desprovida de polêmicas e preferências. Mas será sempre um exercício saudável. Estamos falando do filme (revisitado) O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (94’), direção de Sophia Coppola, EUA (2017). É um drama que se passa na época da Guerra da Secessão, no sul dos Estados Unidos, Virgínia, 1964. A guerra entre nortistas, industrializados, e sulistas, agrários e escravocratas, envolvia a disputa para refazer os modos de produção de uma América que estava já se preparando para ser a grande potência do século XX. O trabalho escravo, sem dúvida, era um empecilho para as ambições da nação norte-americana. Estes antagonismos, históricos, de certa maneira se refletem na composição da narrativa do filme, baseado no romance homônimo de Thomas Cullinan. Mas, para a diretora e roteirista Sophia Coppola, o que interessa não é a guerra e seus homens, mas sim aquelas mulheres, enclausuradas, em meio à guerra, pelo medo e pelo desamparo.
Um cabo do exército ianque, John McBurney (Colin Farrell) é encontrado, ferido, nos arredores de uma escola sulista, por uma menina que estava colhendo cogumelos no campo. A garota Amy (Oona Laurence), sem pestanejar, leva o ferido para dentro do internato, onde ela e mais quatro adolescentes moram e estudam. Assim que acomodam o estranho no sofá da sala de música, está acionado o gatilho dramático que vai mudar a rotina e a história daquela escola para mulheres. Além das cinco meninas que habitam a imponente construção de estilo sulista, com toques escandalosos de arquitetura clássica, vivem ali, também, a proprietária, Martha Farnsworth (Nicole Kidman), cujo passado sexual é bastante nebuloso, e a professora Edwina Dabney (Kirsten Dunst), convivendo com a incômoda inexistência de vida amorosa. As cinco alunas, umas mais, outras menos, já deixam transparecer os efeitos de uma adolescência atormentada por desejos que clamam por conhecer os prazeres básicos da vida. A presença do estranho vem apenas provocar, em noites de fantasias, as irreprimíveis libidos.
E aí, caro cabo do exército ianque charmoso, você que habita a pele de um Clint Eastwood canastrão, na versão de 1971? E você, caro cabo ianque aparentemente bonzinho, que se esconde na pele de um Colin Farrell confuso, versão 2017? Como se comportar diante destas mulheres assustadas, que se esbatem para não se envolverem com o estranho, mas que aos poucos vão sendo arrebatadas, corpos e corações, pelo iminente predador? As camas estão prontas para receberem os desejos. Como nelas se deitarão, vai depender da concepção de cada uma das produções. A de 1971, sabemos, não se nutre de meias palavras. A de 2017 prefere as insinuações tiradas das caixinhas do falso pudor. A falta de compromisso com certas regras que controlam a rígida moral leva o filme de Clint Eastwood a ser colocado numa prateleira mais baixa na hierarquia artística do cinema. A proposta de Sophia Copolla é bem diferente. Ela se propõe a levar o antigo e fértil argumento – a inesperada chegada de um estranho em um internato feminino – para um lugar mais nobre no conceito da crítica e do público. E ela consegue. Mas, não totalmente.
O nosso foco de discussão é o filme atual. E estamos falando de uma diretora cujo estilo é muito peculiar. Sophia Coppola prefere centrar o drama nas personagens, tirando a possibilidade de que agitações externas venham a diminuir a força intimista das cenas. No mínimo, Sophia Coppola tenta nos fazer crer que não somos joguetes de forças maiores e incontroláveis, apenas somos pessoas frágeis e silenciosas, dominadas por desejos e incertezas, de preferência desvinculados dos inevitáveis embates sociais. Se mal conseguimos lidar com nossos monstrinhos, por que sair por aí arranjando outros, com certeza mais ferozes? Este recuo na contextualização da sociedade sulista, com suas podridões e sua desintegração, como pano de fundo da narrativa, seria compensado com o aprofundamento das questões femininas urgentes, mulheres vagando pelos cômodos da suntuosa casa, cada vez mais perturbadas pela inusitada presença do estranho.
O Estranho que nós amamos é um filme datado e localizado, como já dito acima, mas sua temática não é. A possibilidade de que aquele estranho seja tomado por furiosos impulsos libidinosos não parecem preocupar Sophia Coppola. Em sua concepção, a libido feminina nasce antes. E esta é a boa sacada do roteiro. Que promete escancarar. Afinal, quando se fala do feminino (eis a temática), sempre pensamos em ousadias. E Sophia vai mostrando com sutilezas e sensibilidade as pequenas transformações acontecendo com cada uma delas, motivadas pela presença do estranho. Cada gesto merece um desenho. A câmera mostra, e, pacientemente, espera. São os olhares, as curiosidades e suspiros junto à porta, os brincos tirados das gavetas, roupas mais ousadas e coloridas, este apresentar-se ao homem vai sendo paulatinamente oferecido ao público. Só que mais adiante, o espectador vai perceber, quando da brusca virada, exatamente no meio do filme, que Sophia não nos mostrou o suficiente. Podia ter-nos mostrado mais. Para construir o ponto de virada de que falamos, ela escolhe apenas duas das sete mulheres, a reprimida Edwina, e a bela e fogosa Alícia (Elle Fanning) para fazerem o jogo de sedução. O estranho, que prometera a noite a Edwina, vai escolher a bela e nada reprimida Alícia, desencadeando ciúmes e a tragédia.
A partir deste ponto, o filme entra em outra rota e dinâmica. Em níveis altos de tensão, que não é bem a pegada do filme. Que agora caminha de forma apressada para seu final. Tudo foge ao controle. Não há mais tempo para Sophia se debruçar sobre o feminino. Permitir que suas mulheres se expressem, se soltem, aprofundem seus dilemas e anseios. Edwina é a única que ainda tenta desatar os nós dos seus desejos, correndo para os braços do agora raivoso estranho. As meninas pairam sobre o que acontece, sem se deixarem envolver. O que se queria ver é como se comportariam as mulheres, pois os homens, estes nós já sabemos como se comportam. E aqui reside a comprometedora timidez da direção.
O roteiro, na ânsia de cortar os excessos da produção anterior, parece deixar pontos cegos ao longo da narrativa, principalmente na estruturação da personagem que se queria a principal, Martha, a proprietária. Vemos uma Nicole Kidman subutilizada. Assim como a escravidão, o incesto e a falsa pedofilia não são assuntos adequados para um filme correto, temas estes presentes na versão 1971. Essa coisa do politicamente correto foi uma praga que jogaram sobre a humanidade para tornar a hipocrisia ainda mais eficiente. E a arte perde com isso, quando ela própria se autoimola. Coisas ficaram por serem ditas, e as mulheres, com seus comportamentos mornos, desejos mal digeridos, nos leva a pensar que, para que a eficiência de Sophia Coppola fosse completa, talvez ela precisasse da presença do excitante e viril Clint Eastwood. Aí, quem sabe, iríamos ver o internato pegar fogo. Sem Clint, a maioria dos desejos pararam à porta. Não entraram.
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