Roberto Gerin

Resenha O Expresso da Meia-Noite, por Roberto Gerin

OS PESOS E AS MEDIDAS DO CRIME

Se o espectador quiser ficar tenso além da conta, comer pipoca num ritmo acelerado, ficar inquieto, querendo saber qual vai ser o final do filme, ou ainda, se quiser que chegue logo o final do filme porque não aguenta mais ver tanto sofrimento, eis uma boa sugestão. Assista a O EXPRESSO DA MEIA-NOITE, (120’), direção de Alan Parker, EUA/Reino Unido (1978). É um clássico. Talvez num tom menor, mas um clássico.

O tom menor a que nos referimos deve-se talvez à carga ideológica que pesa sobre o filme. Não que não exista ideologia no mundo, é só o que existe, e ela é determinante para formatar o dia a dia do cidadão. O filme é baseado numa história para lá de real, um cidadão norte-americano preso nos porões de uma prisão turca. Seria apenas mais um fato policial não fossem as repercussões geradas, envolvendo países com interesses políticos opostos. Mas não é esta ideologia que tira alguns centímetros da estatura artística do filme. É uma outra, mais sutil.

A violência como produto de beleza.

Um estudante norte-americano, Billy Hayes (Brad Davis), de passagem com a namorada pela Turquia, resolve traficar haxixe, pensando em vender os dois “inocentes” quilinhos para os amigos de universidade, lá nos Estados Unidos. Ótimo, cobriria os gastos de viagem. Certo? Errado.

Naquela época, início da década de setenta, quando o mundo da Guerra Fria ia dormir para acordar no dia seguinte ainda dividido em dois, os transtornos sociais gerados pelo tráfico de drogas não estavam no epicentro das atenções. Dentro deste contexto, e não levando em consideração que na Turquia traficar já era coisa mais ou menos séria, Billy decide achar que valia a pena tentar passar pela segurança do aeroporto turco com dois quilos de haxixe colados ao corpo. No entanto, já dentro do aeroporto, percebe que não está preparado para o crime. O nervosismo o denuncia. Billy vai preso, e aí começa sua via sacra de sofrimentos pelas execráveis prisões turcas. Haja pipoca!

O filme, nas mãos hábeis de Alan Parker, sem deixar de mencionar o preciso e dinâmico roteiro de Oliver Stone, ganha dimensão humana justamente pela forma como as relações nas prisões turcas são estabelecidas. Ali também o mundo é dividido em dois, os presos turcos e o resto. Se for norte-americano, aí que é resto mesmo.

A nossos olhos, Billy passa de criminoso a injustiçado.

Billy e seus dois comparsas, Max (John Hurt) e Jimmy (Handy Quaid), que compõem o vibrante núcleo narrativo de O expresso da meia-noite, não são poupados das raivas “ideológicas” dos guardas brutamontes, cães menores e famintos, que apenas reproduzem, na fantástica personagem de Hamidou (Paul L. Smith), o sistema prisional turco, tratado com crueza pelas lentes de Alan Parker, e com certo maniqueísmo, pelos tons exagerados com que é mostrado.

O certo é que as motivações da conduta humana estão baseadas na visão relativa que temos do que é o bem e do que é o mal. É desta visão que nasce, perigosamente, a arbitrariedade. E tornar-se vítima da arbitrariedade foi a principal condenação de Billy Hayes. O que conta é o interesse do momento. É desta visão, refletida no maniqueísmo, que o filme tira sua força moral e estética. A violência como produto de beleza.

Mesmo tendo Billy Hayes cometido o crime de tráfico de drogas — afinal, ele foi pego em flagrante —, recusamos a colocá-lo na ala dos maus. Isto acontece porque há um jogo maior, entre potências militares, em que Billy é visto apenas como vítima da estrutura polarizada vigente à época. Condenado a quatro anos de prisão por consumo, e após ter cumprido este tempo, vê a acusação, com caráter retroativo, transformá-lo em traficante, com direito à prisão perpétua. Não é difícil para o espectador entender o desespero de Billy. A nossos olhos, ele passa de criminoso a injustiçado.

Em O Expresso da Meia-noite, o erro não é uma condenação, mas uma condição de ser da natureza humana.

Deste modo, mesmo defendendo seu cidadão, mesmo o apelo por clemência passando pelas mesas da Casa Branca, o presidente Nixon não vai colocar seus porta-aviões às portas de Istambul e exigir que libertem seu pequeno traficante.

O filme  O Expresso da Meia-Noite ganha ares de tragédia humana na fabulosa cena do encontro de Billy com a namorada Susan (Irene Miracle), quando nada mais importava naquele sagrado instante de encontro com o feminino senão que ela levantasse a blusa e lhe oferecesse os seios nus colados ao vidro de segurança. Esta cena alça o filme, de vez, à categoria do clássico. E é clássico quando uma obra de arte resgata o humano da sua trágica essência.

Mas onde está a pequena fraqueza do filme? Fraqueza, modo de dizer. A preocupação em preservar os bons, esta poderia ser a fraqueza, ou a sutileza ideológica que tira um pouco a ousadia moral do filme. Susan, a namorada, nada sabia das falcatruas do namorado. Vamos preservar a moça, eis a ideologia do bonzinho! Melhor talvez seria ela saber de tudo, mesmo que não concordasse, e ser apenas poupada pelo namorado na hora de ser preso. E de fato ele o faz. Mas, ao poupá-la, ele está salvando uma inocente e não uma cúmplice.

O que seria das nossas esperanças se nos baseássemos tão somente na lógica?

Preserva, assim, no imbróglio, a boa mocinha norte-americana. Se ela fosse cúmplice, portanto, culpada, a ação de Susan de oferecer os seios ao desesperado e destruído namorado daria uma dimensão humana insuportável ao crime e a cena do vidro seria a consumação da loucura humana, quando perceberíamos, na cumplicidade, que o erro não é uma condenação, mas uma condição de ser da natureza humana.

Mas enfim. Diante de tanta impotência e se agarrando à lucidez como forma de sobrevivência, o filme O Expresso da Meia-Noite não tem como oferecer ao personagem Billy outra alternativa senão apelar para o fortuito. Afinal, o que seria das nossas esperanças se nos baseássemos tão somente na lógica? Enlouqueceríamos. O personagem e o espectador. Mas, neste belo filme, o fortuito nos salva, a todos. O que prova que somos seres indefesos, portanto inteiramente pertencentes à espécie humana.

 

Conheça O Voo da Pipa, uma obra de Roberto Gerin.

 

2 Comentários

  1. […] Para quem quiser ir um pouco além, podemos mencionar, dentre tantos clássicos, dois deles. O Expresso da Meia-noite, que conta a história de um presidiário norte-americano nas perversas prisões turcas, e […]

  2. Fato verídico, muito bem retratado em filme, que, te faz refém da cadeira do cinema…vc se sente preso a partir do flagrante, e sofre junto com ele, todas as condições desumanas que serão impostas a ele no cárcere…

Deixe seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *