O Garoto
ATRÁS DE UMA LÁGRIMA HÁ UM SORRISO
Com essa surpreendente obra cinematográfica, O GAROTO (50’), EUA (1921), Charlie Chaplin ressurge de um período de crise criativa. Já famoso e reconhecido, podemos assegurar que, com este filme, o roteirista, o diretor e o ator Chaplin fincam de vez os dois pés na fama reservada aos grandes nomes da sétima arte. É seu passo definitivo. Primeiro, ao deixar para trás questões pessoais que afetaram sua vida como artista; segundo, ao embarcar corajosamente em um novo e ambicioso projeto. Podemos imaginar o esforço despendido por Chaplin para atingir o resultado desejado. E o que se viu foi um salto de maturidade, pessoal e artística. Artística, pelo que já conhecemos de sua trajetória; pessoal, porque, de certo modo, em O Garoto, ele visita emocionalmente sua infância, os tempos em que o menino Charlie Chaplin passara seus dias em um orfanato, em Londres. Como viria a reconhecer o homem Chaplin, vivera dentro de uma infância trágica.
O filme apresenta estrutura relativamente simples. A mãe de um recém-nascido é rejeitada pelo pai do seu filho. Ela então resolve abandonar o bebê, colocando-o dentro de um carro estacionado em frente a uma mansão. Queria assim dar ao filho um destino glorioso. Mas o drama chapliniano entra em ação e o carro é roubado. E o bebê chorão é abandonado pelos ladrões no chão de uma ruela qualquer. Eis o pior destino!
Para oferecer uma ideia da organicidade dramática do filme, podemos dividi-lo em três momentos distintos.
Quem vai encontrar o bebê? O Vagabundo, lógico. E aqui a narrativa de fato começa, com um Chaplin enchendo a tela daquela poesia feita de pequenos gestos que vão construindo situações profundamente humanas. E sua tarefa é facilitada pela excepcional atuação do garoto, agora com cinco anos, o ator mirim Jackie Coogan, que, sem medo, desenha diante de nossos olhos um mosaico expressivo de emoções infantis, desprovidas de qualquer filtro.
Para oferecer uma ideia da organicidade dramática do filme O Garoto, podemos dividi-lo em três momentos distintos.
Primeiro, temos o início do filme, que começa quando a mãe (Edna Purviance) sai do hospital público, onde dera à luz o bebê, percorre todo o trajeto de abandono do filho, até chegar à cena em que o Vagabundo, após ler o bilhete deixado pela mãe, decide assumir os cuidados pela criança. São magistrais nove minutos de uma precisão narrativa rara de se encontrar no cinema. Predomina, nessa primeira parte, o drama da mãe, que se vê impelida a abandonar o filho.
Essa troca de papéis é a cereja cênica de O Garoto.
A alegria pela decisão do Vagabundo em acolher o bebê poderia, aos olhos do espectador, amenizar a dor materna. Mas não é o que acontecerá. A dor da mãe só se aplacará com o reencontro com o filho, o que se dará adiante, depois que ela própria se torna uma grande atriz. Nesse meio termo, a sequência de situações burlescas, em que o Vagabundo tenta de tudo para se ver livre do bebê, parece não ter fim. Angustiados, torcemos para que ele leve de uma vez por todas o bebê para casa!
A segunda parte é de pura magia cômica, e vai até o trigésimo primeiro minuto do filme. É Chaplin esculpido em carrara! Na sua quintessência, catapultado à perfeição pela também perfeita atuação do garoto Jackie Coogan, transformado no sósia mirim do Vagabundo. Quem cuida de quem, quem imita quem? Essa troca de papéis é a cereja cênica de O Garoto. São os momentos em que a tela se enche de ternura, transborda humanidade, é quando sentimos que a vida pode nos oferecer momentos de redenção. Ou, pelo menos, de esquecimento de nós mesmos.
A narrativa se fecha num melodrama comovente, ao estilo de Chaplin.
E, por fim, a terceira parte, quando predomina novamente o drama. O garoto cai doente e o asilo público interfere, separando o garoto do Vagabundo. E o drama se completa na ação heroica do Vagabundo, ao salvar o garoto das garras do orfanato, colidindo aqui com a história do próprio garoto Chaplin, que o diretor reconstrói através do cinema. O artista não se separa de sua vida.
Por fim, permeando as três atmosferas do filme, acompanhamos o processo de culpa da mãe pelo abandono do filho. Mas o destino, na caneta generosa do roteirista Chaplin, já está traçado.
A narrativa se fecha num melodrama comovente, sim, ao estilo de Chaplin, mas sem cair no vitimismo. Chaplin é um artista, ele precisa narrar a vida, mas precisa também preservar a arte. Para isso, usa uma ferramenta poderosa: o humor cravejado de ironia, estratégia esta que eleva o filme a uma imensa altura artística, fechando o ciclo de uma filmografia que vem para prestar contas de um passado que, se não se fecha, pelo menos se consola em si mesmo.
Após produzir O Garoto, Chaplin, na década de 1920, arremessa-se em direção às suas grandes obras.
Parece-nos difícil descrever aqui, neste curto espaço, tantas cenas que mereceriam atenção especial, tamanha a perfeição com que elas são cuidadosamente construídas. Já se sabe do perfeccionismo exagerado de Chaplin, que o fez inclusive ter sérios problemas com as distribuidoras, que passaram a não ter paciência para esperar pelo próximo filme do diretor. Esta situação levaria Charlie Chaplin, em 1919, junto com Douglas Fairbanks, Mary Pickford e o famoso diretor David W. Griffith, a criarem a United Artists, uma oportunidade para os artistas escaparem à tirania comercial dos grandes estúdios.
Em suma. Agora Chaplin está livre para acompanhar a rápida evolução (tecnológica e artística) do cinema naquela década de 1920, que pede cada vez mais variações de ação e emoção, pois agora as narrativas precisam caber nos sonhos de milhões de espectadores que começam a se acostumar a consumir ilusões projetadas nas telas. Charlie Chaplin não se acanha, não se encolhe. Pelo contrário. Arremessa-se em direção às suas grandes obras, provando mais uma vez que na arte não bastam as técnicas. Precisam-se dos sonhos, das esperanças, do coração. É assim que Chaplin se encontrará definitivamente com o cinema. Mergulhando nas profundezas criativas de sua própria arte.
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