O Grande Ditador
HISTÓRIA CONTADA EM TEMPO REAL
O GRANDE DITADOR (124’), roteiro e direção de Charles Chaplin, EUA (1940), é a grande obra com a qual Chaplin encerra uma sequência de filmes icônicos e resolve enfim sua tumultuada relação com o cinema sonoro. Em O Grande Ditador, Chaplin faz uso da palavra para falar de realidades urgentes, quando à época o mundo via a ascensão do nazismo e a iminente eclosão de mais uma guerra de grandes proporções. Como artista, revela sensibilidade notável para captar e transformar em fábula questões para ele fundamentais. Interessavam-lhe os princípios básicos que regem as relações humanas. Para ele, é do mau uso desses princípios que nasce o trágico.
E Chaplin vai mais além em suas convicções. Sem a possibilidade de o ser humano se manifestar, de se sentir livre, e mais, sem que se adotem regras de convivência que perpassam pela gentileza, pela empatia e pelo reconhecimento do direito pleno do outro, não haverá possibilidade de se construir uma civilização saudável. Eis as razões que motivam Chaplin a denunciar o que está acontecendo com o mundo em vias de ser dominado por um ditador a que intitula — com total felicidade do termo — “maníaco medieval”.
O Vagabundo é sua síntese humana.
Em meio ao caos, urgente é defender a liberdade, cuja conquista — e manutenção — vale qualquer esforço. Chaplin reserva para si o grande momento em que, depois de toda uma carreira cinematográfica dedicada ao cinema mudo, vai soltar o verbo no poderoso discurso final, onde deixa claro o direito inalienável de todo ser humano de viver plenamente a vida. Esta é a razão íntima que movia suas produções, encarnada na fabulosa personagem que ele próprio desenhara para si, com seu chapéu, bengala, sapatos e bigode, e que simboliza o sonho de uma humanidade fraterna. O Vagabundo é sua síntese humana.
Ao dividir a trama em dois núcleos distintos, fica clara a preocupação do diretor em rastrear, com toda precisão, os movimentos de cada uma das duas personagens protagonistas — de um lado o barbeiro judeu, e do outro o ditador da Tomânia, Adenoid Hynkel. Ambas são figuradas por Charlie Chaplin, portanto, na aparência, são iguais.
No entanto, como personagens únicas, revezarão seus momentos nas telas como sósias que se confundem num jogo de espelhos que vão refletindo uma sequência exuberante de ações que se alternam entre poder e solidariedade, ódio e afeto, repressão e liberdade, até desembocar na inversão dos polos, quando as ideias do Barbeiro vão se sobrepor às ideias do Ditador. Essa inversão possibilita que Chaplin materialize, no famoso discurso final, sua verve humana, despejando nos alto-falantes espalhados pela Europa o seu grito de esperança por um mundo melhor, liberto dos horrores da destruição. É Chaplin sendo coerente com sua história de artista supremo.
Em O Grande Ditador, como na maioria dos filmes de Chaplin, não há o fim trágico.
O barbeiro sofre grave acidente ao final da Primeira Guerra Mundial, que o mantém desacordado ao longo do entreguerras, só retornando à sua barbearia, no gueto judeu — e sofrendo de amnésia —, às vésperas da deflagração da Segunda Guerra Mundial. Adenoid Hynkel, na posse do poder absoluto, está pronto para invadir o país vizinho, Osterlich (leia-se Áustria), o que dará início ao conflito mundial. É nesta situação de tensão limite que o filme nos apresenta a angustiante realidade de um mundo que desaba a nossos pés, tendo como temática principal — e não poderia ser diferente — a questão da perseguição aos judeus.
Em meio a toda essa tensão gerada pela guerra, cabe espaço para o amor que se desenha entre o barbeiro e a órfã Hannah (Paulette Godard), a quem Chaplin vai dirigir seu grito final. Como na maioria dos filmes de Chaplin, não há o fim trágico, não há o corte fatal. A vida continua, com a esperança de que, a partir da palavra “FIM”, tudo melhore. Em O Grande Ditador não é diferente.
Dadas as situações políticas da época, Charles Chaplin sofreu pressões — inclusive de amigos — para suspender o projeto. No entanto, manteve-se firme, confiando em seu trabalho, como sempre o fizera. O projeto começou a ser gestado ainda em 1937, quando o nazismo já era uma realidade terrível, com seus campos de concentração, a perseguição implacável aos judeus e as intoleráveis ideias de supremacia racial. Toda esta situação sensibilizava Chaplin, fortalecendo cada vez mais seu objetivo de ridicularizar o nazismo, com ênfase na absurda mística da superioridade da raça ariana. Como ele mesmo dirá, pela boca de Hynkel — “lindos arianos loiros”.
O Grande Ditador viria a se tornar a maior bilheteria de Chaplin.
Chaplin antecipou os horrores, só não conseguiu evitá-los. Quando em 1940, Chaplin enfim estreia o filme, o impacto positivo foi imediato. Acompanhado de fortes reações do lado contrário — inclusive por parte do próprio Hitler.
O filme viria a se tornar a maior bilheteria de Chaplin, e se transforma, como um clássico do cinema, na grande voz contra a ditadura do pensamento dominante, cujo único objetivo é deter o poder em favor de ideias contrárias ao desejo da maioria. O favorecimento e a manutenção do interesse dos poucos, eis a triste e milenar realidade, dor que a humanidade carrega e que Chaplin eterniza em O Grande Ditador.
Muito já se falou sobre a icônica cena em que o ditador Hynkel, feito um menino birrento, brinca com o balão em formato de mapa-múndi. É a perigosa materialização do poder absoluto, insensível e egoísta. A explosão do balão sinaliza para a temporalidade — e vulnerabilidade — do poder que, como nos mostra a história humana, é sempre passageiro. Vamos, no entanto, nos ater a um outro movimento do filme, bastante singular, revestido de humor, em que Chaplin retrata a obsessão dos alemães por invenções tecnológicas que os levem ao domínio político, bélico e racial do mundo.
Um novo invento — a criação de um poderoso “gás venenoso que mata todo mundo”.
Numa sequência hilária, o ocupadíssimo e para lá de ansioso Hynkel — Chaplin faz um preciso e triste retrato de Hitler, realçando sua conhecida insegurança e irritabilidade — é interrompido pelo obeso marechal Herring na sua ânsia de mostrar ao ditador a próxima invenção, um uniforme à prova de bala. Hynkel, ao fazer o teste, atirando no proponente, mata-o, atestando a ineficiência do invento. Mais adiante outra demonstração, agora de um paraquedas pessoal que abre em apenas três metros de queda. A demonstração, evidente, fracassa e leva à morte o proponente. Ainda mais adiante, Herring adentra o gabinete propalando um novo invento — a criação de um poderoso “gás venenoso que mata todo mundo”. Hynkel simplesmente rechaça o intruso, desacreditando-o de mais esta ideia espalhafatosa. Causticamente irônico, Chaplin, em despretensiosas e hilárias inserções, anuncia o terrível holocausto.
O cuidado na escolha dos nomes de países e personagens históricas foi outro ponto sensível na construção da narrativa. Óbvio que Chaplin não tinha preocupação em esconder nada, pelo contrário, quanto mais as referências se aproximassem da realidade, maiores seriam os efeitos que pretendia alcançar. Adenoid Hynkel é Adolf Hitler, ditador da Tomânia (Alemanha), Benzino Napaloni (Jack Oakie) é Benito Mussolini, ditador da Bactéria (Itália),) Garbitsch (Henry Daniell) é Joseph Goebbels, o ministro da propaganda, mestre em criar fake news, e Herring (Billy Gilbert) traduz o estabanado marechal Hermann Goring. Como se pode crer, tudo não passa de mera coincidência.
Com seu filme O Grande Ditador, Chaplin coloca a figura ditatorial de Hitler no seu devido lugar — uma aberração; um item de zoológico.
Chaplin se confundia nas telas com ele mesmo. Homem e artista se fundiam numa mesma pessoa. Carregaram juntos, nos mesmos ombros, uma parceria de respeito e coerência com seus princípios e talentos. E este talvez tenha sido o grande trunfo do homem artista. O artista respeitou o homem, fez dele seu parceiro, enfrentaram juntos sérias dificuldades, muitas de cunho político, caminharam, sim, para uma perigosa autossuficiência, o centro absoluto de suas produções, a ponto de, se tirarem o Charlie e o Chaplin, pouca coisa restará dos filmes. Não tinha pudores de assumir esta grandiloquência, mesmo que com ela tenha Charlie Chaplin construído sobre sua obra um telhado de vidro. Sem problemas. Afinal, ele próprio foi a causa e o efeito de sua genialidade.
Em suma. Cabe observar as sutilezas na composição das personagens barbeiro (judeu) e ditador (antissemita). Chaplin tinha a preocupação em acariciar o barbeiro e em espancar o ditador. Para isso, ficam evidentes as escolhas dos gestuais, das pantomimas, das cenas hilárias de pastelão e toda variação imensa do repertório chapliniano, de fabulosa riqueza. Enquanto para o barbeiro reserva o humor ingênuo e humano, que reverbera bondade e afeto irrestritos, mais próximos do Vagabundo, para o ditador Hynkel ele desenha um gestual vazio, mecânico, compulsivo, recheado de absurdos pastelões, feitos para ridicularizar, jamais para notabilizar, ficando clara, neste desenho, a proposta máxima de esvaziar a figura ditatorial de Hitler, banalizando-o num simples autômato, sem qualquer reverberação humana. Antes, uma aberração. Um item de zoológico.
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