Roberto Gerin

Resenha O Intendente Sansho Roberto Gerin

O PESADELO MEDIEVAL

Kenji Mizoguchi foi (e ainda é) um dos mais prestigiados cineastas japoneses. Muitos o colocam como um dos grandes expoentes da história cinematográfica mundial. Não são declarações baseadas na empolgação do gosto pessoal. Basta visitar sua obra fílmica para se certificar de que Kenji Mizoguchi não só foi um grande artista como também um ser humano de alma inquieta, preocupado com o que acontece no mundo (social) à sua volta. As questões femininas surgem como um dos temas centrais na maioria dos seus filmes. Seu pai, em dificuldades financeiras, vendeu sua irmã de 14 anos para ser gueixa e este fato marcou profundamente a vida de Mizoguchi. Cabe-nos lamentar sua morte prematura, em 1956, de leucemia, aos 58 anos, quando se encontrava no auge artístico de suas produções. O artista se foi, mas ficou sua exuberante arte.

No rol das obras primas de Mizoguchi, cabe destacar um dos seus filmes mais festejados, O INTENDENTE SANSHO (124’), produção japonesa de 1954. Neste filme, o diretor problematiza a história socioeconômica do Japão, uma de suas temáticas favoritas. Kenji Mizoguchi sempre cortejou ideias socialistas, na sua acepção mais ingênua, a de que nascemos todos iguais e por isso temos a obrigação de nos amarmos uns aos outros. Pode parecer sentimental, mas o cinema não deixa de ser um palco generoso, onde cabem posições pessoais, desde que a fala não seja lamentação, mas tão somente pura arte.

Mesmo que seja duro consigo mesmo, seja misericordioso com os outros.”

Nesta obra, o diretor revisita o romance de Ogai Mori, lançado em 1915, que por sua vez traz para o leitor uma antiga lenda japonesa datada entre os séculos X e XI. Apesar de retratar as desventuras de uma família inserida na alta burocracia do império japonês, o filme foca suas câmeras no sofrimento do povo sob o jugo do implacável modelo feudal vigente à época. Interessa a Mizoguchi o homem como indivíduo inserido em seu meio histórico.

Por esta perspectiva, temos, de um lado, o encastelamento da aristocracia, com seus inatacáveis privilégios, e do outro, a massa informe de seres humanos desfigurados por condições subumanas de vida. Esta é a lenda medieval. O Japão transformado em laboratório da história do homem na terra. E é com estas palavras que o filme inicia, referindo-se à sua contextualização temporal: “Quando o Japão ainda não havia saído da idade das trevas, e a humanidade ainda não havia acordado como seres humanos.” E continua. “Foi recontada pelas pessoas durante séculos e é estimada hoje como um dos folclores épicos da história”. Diante dos nossos olhos, em O Intendente Sansho, o Japão ressurge mergulhado nas trevas.

Mal iniciam a viagem, são sequestrados por traficantes de escravos.

O clã Masauji vive das benesses do sistema feudal. O patriarca ocupa o alto cargo de governador de Tango, uma das províncias ligadas a Kioto. A parte introdutória do filme se preocupa em trazer para o espectador os valores (humanos) cultuados pelo clã, na figura magnânima de Masauji Taira (Masao Shimizu). Ao pregar o amor ao próximo — e este amor tem como objetivo minimizar os sofrimentos do povo —, Masauji acaba atraindo para si a ira do sistema. Não é usual o que ele ensina ao pequeno filho Zushiô, transmitindo-lhe a sublime ideia de que os homens foram criados iguais, portanto, todos têm direito à felicidade.

Neste aspecto, concepções espirituais e sociais se misturam quando o pai diz ao filho que “um homem não é um ser humano sem misericórdia.” E aconselha. “Mesmo que seja duro consigo mesmo, seja misericordioso com os outros.” Ora, este ensinamento não cabe na estrutura feudal. E Zushiô levará para a vida a certeza de que o pai fora condenado e exilado apenas por ter sido um homem bom e correto. A imagem da bondade é simbolizada pelo amuleto que ele recebe do pai, a imagem da Deusa da Misericórdia, o tesouro da família. Estabelece-se assim a dicotomia entre as crenças pessoais e as opressivas exigências burocráticas do império.

A segunda parte do filme é a mais longa e a mais significativa. Começa retratando a mãe, Tamaki (a soberba Kinuyo Tanaka), e seus dois filhos, Zushiô (Yoshiaki Hanayagi) e Anju (Kuôko Kagawa), em fuga para o interior do Japão, após o exílio do marido. Mal iniciam a viagem, são sequestrados por traficantes de escravos. A mãe é levada para a ilha de Sado para se tornar cortesã. As duas crianças chegam como escravas às terras do Intendente Sansho, o representante máximo da sustentação econômica (através do imposto do arroz) do sistema vigente. É a sofrida inserção dos nobres na realidade social do Japão medieval. E é a oportunidade para Kenji Mizoguchi mapear os mecanismos de opressão do ser humano pelo ser humano. Esta é a fala do diretor — onde não há a misericórdia, o mal impera.

Em O Intendente Sansho, Misogushi nos faz crer que a rota da história continuará sulcando a mesma trilha, na sua eterna ida e no seu eterno retorno ao ponto de partida.

Um exemplo desse cenário de maldades é quando Zushiô, o escravo, marca com ferro em brasa a testa de outro escravo, este fugitivo. Esta cena traduz a percepção de que a maldade é uma moeda valiosa no mundo das trevas.

Mas que fique claro. Não é um deus ou um ser poderoso que oprime, que chibata, que derrama o sangue do próximo. O agente da opressão é outro ser humano, igual àquele que ele oprime. Nesta lógica, ao assumir o papel de agente opressor, Zushiô se distancia dos ensinamentos paternos. E é com horror e revolta que ele se dá conta da sua atual condição. Desfigurado pelo ódio, e com a ajuda da irmã que assume o autossacrifício pela redenção do irmão, Zushiô foge em busca de suas origens.

A terceira e última parte narra a trajetória de Zushiô nas suas tentativas de reencontrar-se com a própria história. É o momento da transformação pelo autoconhecimento. O retorno não aos tempos de glórias burocráticas e sim aos ensinamentos que deram sustentação à construção da sua personalidade. E mesmo que tenha herdado o antigo posto do pai, o de governador de Tango, a atitude justiceira de Zushiô não invalida a sua busca. Ele precisa resgatar a própria liberdade, eliminando a escravidão. Ao punir o seu algoz, o Intendente Sansho, ele cria a ilusão da liberdade conquistada. A humanidade respirará momentaneamente o ar da igualdade. Nos sonhos paternos de Zushiô, a humanidade torna-se, por um lapso histórico, dona de si mesma.

No entanto, ao libertar o seu povo, Zushiô não mudará a história. E muito menos interessa a Kenji Mizoguchi provocar artificialmente esta mudança. Ao cumprir seu papel de libertador, e depois de abandonar tudo, riqueza e status, Zushiô oferece tão somente a si mesmo a liberdade desejada. O que não significará o fim dos seus sofrimentos.

O Intendente Sansho, de Misoguchi, desmistifica a ideia de que a bondade está na essência da natureza humana.

Vale mencionar aqui uma das técnicas recorrentes nas filmagens de Kenji Mizoguchi. Estamos falando da elipse. É quando um fato crítico, seja a morte, a execução ou o ato sexual, é omitido pela câmera. Que busca outros recursos insinuativos para descrever o que está acontecendo fora do seu campo de visão. Em O Intendente Sansho, temos a poética cena de Anju entrando no lago em direção à morte por afogamento. Na elipse, resta-nos apenas contemplar as pequenas ondas em círculos se agitando na água, como se alguém tivesse lançado ali uma pequena pedra.

Antes de concluir, permitamo-nos uma última reflexão.

Se lançarmos um olhar atento para a história, não para a história que aprendemos nos bancos escolares, mas para a história que impregna nossa pele e nossa memória, vamos nos dar conta de que há uma inexorável evolução plana, que jamais parece ter fim. Esta é a impressão que guardamos do filme. A de que estamos há milhares de anos estagnados, vítimas de nossas próprias construções de vida cotidiana, desprovida de começo, meio e fim. Não há um horizonte para se contemplar.

Sem deixar de oprimir e de sangrar, de sonhar e de lutar.

O discurso acima, aparentemente desconexo, serve apenas para dizer que o formato de vida muda a todo instante, com novas tecnologias, novas ideologias e novas culturas. Mas o conteúdo, com seus sofrimentos e esperanças, continua o mesmo. Ad infinitum. Neste triste cenário, o que nos resta é mudarmos a nós mesmos. Pela consciência, pela busca espiritual, ou mesmo pela renúncia à luta. Kenji Mizoguchi não é um homem otimista. Pelo contrário. A amargura faz despertar nele o desencanto. As terras do Intendente Sansho foram queimadas e o algoz teve o seu julgamento e o seu castigo. Mas sabemos que outro Sansho virá para ocupar as mesmas terras e continuar a derramar o mesmo sangue oprimido. Pela forma como termina o filme, Kenji Misogushi nos faz crer que a rota da história continuará sulcando a mesma trilha, na sua eterna ida e no seu eterno retorno ao ponto de partida.

Em suma. Esta sensação, a de que tudo continuará na mesma, é projetada pela maneira como Mizoguchi faz uso da câmera em sua cena final. Zushiô encontra a mãe decrépita, mas ainda esperando pelos seus. Mas ele e a mãe são os únicos sobreviventes dessa breve tragédia humana na Terra — como reza a antiga lenda. No entanto, abraçados pelo reencontro, perdem o direito de terem a câmera festejando o momento. A câmera envergonhada de Mizoguchi abandona os protagonistas e vai viajando pela praia, até encontrar outro ser totalmente distanciado da tragédia narrada, mas testemunho fiel de que a vida, em seu eterno ciclo, prosseguirá. Sem deixar de oprimir e de sangrar, de sonhar e de lutar. A vida humana, na visão de Mizoguchi, é uma elipse.

 

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1 Comentário

  1. […] se juntar ao repertório de Kenji Mizoguchi ao longo dos anos seguintes, entre elas o clássico O Intendente Sansho, não podemos negar que em Oharu – A vida de uma Cortesã Mizoguchi alcança uma amplitude humana […]

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