Roberto Gerin

Quo Vadis, Aida

A OMISSÃO HUMANITÁRIA

Ao assistirmos a QUO VADIS, AIDA? (104’), 2020, produção bósnia, juntamente com mais oito países europeus, estaremos nos submetendo a uma lenta sessão de tortura emocional. Esta é a imagem que encontramos para traduzir o nervosismo que nos toma conta ao vermos a personagem Aida lutar pelo que parece ser o impossível. Que alguém pare a barbárie que está sendo cometida contra os bósnios, representados no filme pelos 30 mil habitantes de Srebrenica. Tanto mais aumenta nossa indignação ao sabermos ser o filme totalmente baseado em fatos. Que são alinhavados com maestria dramatúrgica e com contundente naturalismo pela roteirista e diretora Jasmila Zbanic. Parece inimaginável (e interminável) o que presenciamos na tela. Resta-nos roer as unhas.

A inserção na trama de uma fictícia família de quatro membros, pai, mãe e dois filhos, foi o feliz achado narrativo que possibilitou à direção maximizar essa tragédia da vida real. É a única ficção do filme, o fio condutor, uma necessidade artística de conduzir o espectador para dentro dos insanos acontecimentos. E o espectador não tem outra alternativa senão compartilhar dos sofrimentos dos refugiados bósnios junto aos portões do acampamento da Organização das Nações Unidas – ONU. Acompanhamos atônitos a empática e inquieta Aida no seu desespero para ao menos salvar seu marido e os dois filhos da matança. A vontade que dá é a de entrar no filme e resolver o impasse. Mas, infelizmente, não é possível nos refugiarmos na ficção. O filme nos empurra o tempo todo para a triste realidade.

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O que mais nos assusta é que o genocídio étnico dos bósnios, considerado o maior morticínio depois da Segunda Guerra Mundial, ocorreu dentro das fronteiras europeias. O que vemos é uma Europa e demais países “civilizados”, incluindo-se aí os distantes Estados Unidos, em passiva omissão diante do previsível massacre.  Os bósnios mulçumanos ficaram à mercê da sanha assassina dos generais sérvios, sem que a comunidade internacional interviesse para socorrê-los. Quo Vadis, Aida? vem para falar desta imperdoável lacuna humanitária. E o filme corretamente não poupa ninguém. Seu alvo principal é a ONU, que sai desse lamentável episódio histórico com sua fachada nova-iorquina tingida de sangue.

As atitudes ambíguas da ONU são, portanto, o ponto de colisão do filme. E é para este ponto de tensão que o roteiro se volta com frequência, numa clara atitude de culpar historicamente o organismo internacional pelo que ocorreu em Srebrenica. A fragilidade da ONU fica evidente quando ela própria permite a entrada dos sérvios em suas instalações. Se num primeiro momento vemos o desespero do chefe da organização, o coronel Karremans, na busca por ajuda junto a seus superiores — que se omitem “para não melindrar os sérvios” —, aos poucos vamos percebendo a incorrigível incompetência política e a inapetência moral do próprio Karremans, que se autoimola trancando-se em sua própria sala, enquanto lá fora as metralhadoras sérvias cumprem sua missão de eliminar os homens bósnios.

O palco do massacre se reduz à pequena cidade de Srebrenica, no justo dia 11 de julho de 1995, portanto, logo ali, distante de nós 26 anos no tempo. Uma barbárie contemporânea perpetrada pelo facínora Slobodan Milosevic, posteriormente levado ao Tribunal de Haia, onde foi julgado e condenado por seus crimes de guerra. Mas nada que trouxesse de volta as vidas ceifadas. Ficaram as cicatrizes profundas, agora abertas por esta comovente obra de Jasmila Zbanic, a quem devemos aplaudir de pé.

A religião, o gênero, a cor e a ideologia são apenas pretextos para acender a pira do ódio. Acesa, somos voluntários para levar a tocha (do ódio) mundo afora.

Aida Selmanagic (Jasna Duricic), professora em Srebrenica, é contratada como intérprete pela ONU para mediar os conflitos entre as forças bósnias e sérvias na região. A atmosfera sufocante do filme é construída logo em seu início. A câmera, em lenta sequência de closes, mostra um a um a família de Aida sentada nos sofás da sala, em sua casa. Lá fora, os canhões sérvios reboam. E eles estão em total atitude de silencioso espanto. Sabem o que está por acontecer. E o espectador, através da eloquente câmera, também ele pressente a tragédia anunciada.

Logo a seguir o espectador é transferido para uma mesa de reunião entre os militares holandeses da ONU e os desesperançados políticos bósnios. Estes já não mais acreditam nas promessas do organismo internacional, que visivelmente se omite em cumprir seu papel de mediador. Essa vergonhosa omissão possibilitará o avanço da destruição, com a entrada do exército sérvio em Srebrenica, obrigando seus moradores a se refugiarem junto aos portões (trancados) da ONU.

Neste contexto histórico entra o contexto ficcional, na figura da mãe e esposa, na sua desesperada busca para salvar os seus. É através das idas e vindas de Aida por corredores, gabinetes e pátios, acompanhada pela ofegante câmera, que vamos presenciando os horrores dos bósnios largados à própria sorte. A luta parece ser em vão, quando Aida vai se dando conta de que não existe saída para o iminente trágico desfecho. E aqui reside o sabor dramático do filme. O espectador passa a conviver com as angústias de Aida. O espectador alimenta a mesma esperança de Aida, de que ela conseguirá salvar o marido e seus dois filhos. O espectador sofre, o espectador torce, o espectador, por fim, se decepciona.

Chamamos a atenção para a cena em que os soldados sérvios entram nas instalações da ONU à procura de soldados bósnios. É neste momento que a roteirista e diretora Jasmila enfia a faca no coração da ONU.

A proposta da diretora é honesta, sem vestígios de rancor. Faz questão de mostrar mais humanidade nos bárbaros sérvios do que nos civilizados integrantes da ONU. A ONU sequer tomou providências para fornecer alimentos e banheiros para os refugiados. Foi preciso que os generais sérvios distribuíssem pão aos famintos. Esta simbologia com certeza é um tapa com luvas de ferro na face de cera da ONU — os algozes dos bósnios ocupam um degrau moral acima. Esta é uma visão didático-histórica que o filme faz questão de registrar, sem mágoas, mas também sem pudores. É a Bósnia-Herzegovina cobrando da história as atitudes humanitárias que lhes foram covardemente negadas. Se o filme não fosse tão bom quanto é, só esta atitude já justificaria sua produção. O grito de acusação lançado na tela é representado pelo último grito de Aida ao inepto coronel Karremans: “O senhor tem que fazer alguma coisa!”

Em suma. Quo Vadis Aida?, indicado ao Oscar 2021 de Melhor Filme Estrangeiro, e ganhador de tantos prêmios, nos traz um alerta. O de que este filme já foi visto muitas vezes ao longo de milhares de anos de história da humanidade. Quo Vadis, Aida? é apenas mais uma cópia terrível a que temos que assistir para tirar nossas próprias conclusões. E a conclusão final é assustadora. Somos intolerantes em conviver com as diferenças. Foi o que aconteceu com os sérvios. Para cumprir seu plano de dominação, tentaram eliminar seus diferentes, os bósnios mulçumanos. E para tanto, valeram-se do agente chamado cidadão, que somos nós, uma espécie burocrática gerada para ser cavalo de batalha de interesses criminosos. Quando acordarmos do pesadelo e nos dermos conta de que transformamos nossos irmãos, amigos, vizinhos e parentes em nossos inimigos, já será tarde. O sangue derramado já terá apodrecido. Será a hora de nos perguntarmos: O que combatemos? Pelo quê? Por quê? Por quem?

Para as perguntas acima, vamos precisar de boas respostas. No entanto, quaisquer que sejam elas, não justificarão nossos erros. A religião, o gênero, a cor e a ideologia são apenas pretextos para acender a pira do ódio. Acesa, somos voluntários para levar a tocha (do ódio) mundo afora.

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