Rebecca – A Mulher Inesquecível
TODO CASAMENTO TEM SEGREDOS
O filme REBECCA – A MULHER INESQUECÍVEL (124’), direção de Ben Wheatley, EUA (2020), é baseado no romance homônimo da escritora inglesa Daphne Du Maurier, lançado em 1938, com grande sucesso de público. O produtor David Selznick — de E o Vento Levou… — se apaixonaria de tal modo pelo romance que já em 1940 lançaria o filme, com direção de ninguém menos que Alfred Hitchcock. Como se pode ver, a produção 2020 de Rebecca – A Mulher Inesquecível tem às suas costas, assombrando-a, um romance de sucesso, Rebecca, e o respectivo filme gótico clássico thriller psicológico Rebecca – A Mulher Inesquecível, ganhador do Oscar de Melhor Filme, em 1941. Este é o grande desafio de qualquer remontagem (remake). Enfrentar, com galhardia e competência, o passado. E se for um passado glorioso, aí sim é que a responsabilidade aumenta.
Fica para o espectador a decisão de gostar ou não da nova Rebecca.
As comparações entre as duas produções são inevitáveis. Pipocam de todos os lados, com vantagens para a produção antiga. Em outras palavras, a produção atual vai para o grande público com algumas reticências. E aqui reside talvez a grande incógnita do filme de Ben Wheatley. Parece que o passado intimidou o diretor, que ficou entre homenagear o filme de 1940, repetindo inclusive cenas icônicas (a cena da luva, por exemplo), ou produzir sua própria visão do romance de Daphne Du Maurier.
Talvez o erro — quase fatal — do roteiro e da direção foi ter ficado a meio caminho. Houve tentativas, principalmente nas soluções finais, de se distanciar do original. Mas foi pouco. No frigir dos ovos, fica para o espectador a decisão de gostar ou não da nova Rebecca. Tem qualidades, cumpre seu papel como diversão, mas talvez terá dificuldades de se firmar como obra a ser aplaudida ao longo dos anos.
Casados, retornam à suntuosa casa de Manderley.
O roteiro pode ser dividido em três partes distintas. Na primeira, que ocupa os trinta minutos iniciais do filme, Maxim de Winter (Armie Hammer), aristocrata inglês, viúvo recente, encontra-se em férias em Monte Carlo, quando conhece uma dama de companhia (Lily James) de uma senhora também inglesa aristocrata, antiga frequentadora das famosas festas na magnífica casa de Manderley, residência do outrora casal De Winter. A paixão entre os dois, o aristocrata e a dama de companhia, rapidamente acontece e o casamento é precipitado pela iminente viagem à Nova Iorque da aristocrata inglesa. Casados, retornam à suntuosa casa de Manderley.
Na segunda parte, a mais episódica, vemos a imagem de Rebecca, a falecida esposa de Maxim, rondar insistentemente a rotina da atual Sra. de Winter. Ela terá que conviver, em cada detalhe (guardanapos, lenços, cartas, agendas, o incomparável quarto conjugal da ala oeste), com a incômoda imagem que vai sendo construída da outra: a de uma mulher bela (a mais bela), inteligente, elegante, de origem nobre, e que misteriosamente desaparece no mar.
O filme Rebecca – a mulher inesquecível nos mostra que todo casamento tem seus segredos.
Por fim, na terceira parte, que se encaminha para o desfecho, e que ocupa os últimos quarenta minutos do filme, há uma reviravolta na trama, em que tudo é desvendado, mostrando ao espectador que as coisas não eram bem como pareciam ser. São os segredos que emergem do mar e vão respingar lama no passado. E assim cumpre-se a finalidade da literatura de Dauphne Du Maurier, e dos respectivos filmes: a de mostrar que todo casamento tem seus segredos. E que às vezes as relações não passam de felizes construções de fachada.
Por exigência do produtor Selznick, e para desgosto do diretor Hitchcock, a produção de 1940 preservou em boa parte o livro de Daphne Du Maurier. Na versão atual, houve também essa preocupação, o que talvez, como já dissemos, tenha sido uma decisão equivocada. Podia explorar certas questões, hoje em voga, que o livro oferece (conflitos sociais, papel da mulher na sociedade, o determinismo do passado), o que talvez possibilitaria à produção fugir da incômoda sombra do clássico de 1940.
A trama de Rebecca – a mulher inesquecível apresenta perigosas armadilhas.
O que se pode dizer em comum às duas versões é que ambas vendem uma coisa, mas o espectador, ao chegar ao final, acaba comprando outra. Esta é a principal força criativa da trama armada por Dauphne Du Maurier, alçando a narrativa a patamares humanos e filosóficos consistentes. É a velha e feroz disputa entre o amor e o ódio.
Não vamos descer a detalhes, visto que a história, como foi ela concebida pela própria autora, traz desafios que podem se transformar em armadilhas para roteiristas e diretores. Com certeza, roteiristas e diretores tiveram que se virar nos trinta para poderem calibrar a trama de forma que seguisse naturalmente seu curso narrativo em linguagem cinematográfica. Só para citar, prendemo-nos a três dificuldades básicas para a trama de Rebecca – a mulher inesquecível.
Incomodada, a Sra. de Winter sabe que tem que agir.
Primeiro, os silêncios de Maxim tomam ares de segredo a respeito do seu passado com Rebecca. A versão de 1940 trabalhou melhor esses silêncios; segundo, a construção de Rebecca no imaginário do espectador — menos eficaz na produção de 2020; e, terceiro, como a Sra. de Winter lida com estas questões — no que tange aos silêncios do marido e em relação a esta mulher fabulosa que vai sendo desenhada diante de si, colocando em risco sua autoestima e seu casamento. Quanto maior vai ficando Rebecca, menor parece se sentir a Sra. de Winter. Incomodada, sabe que tem que agir. E ao agir, ela encaminhará a narrativa para seu desfecho.
As três dificuldades elencadas acima transformam-se em estruturas que sustentam a narrativa e lhe dão vigor, servindo para prender, em atmosferas de tensão e suspense, a atenção do espectador. Neste jogo, 1940 foi mais hábil que 2020, o que acaba sendo o calcanhar de Aquiles da recente produção. A maldosa literatura de Dauphne Du Maurier pede aprofundamentos psicológicos e boas doses de tensão.
E aqui introduzimos a famigerada dama de companhia de Rebecca, a Sra. Sanders.
No entanto, a despeito de tudo e de todos, o que interessa é a personagem que não aparece no filme. Ela é a protagonista. É ela que o espectador quer conhecer a fundo. Afinal, quem é esta mulher que todos admiram, veneram, e não esquecem? E que, morta, parece vagar pelos corredores e quartos da famosa mansão de Manderley?
Fica-nos a impressão de que a verdadeira Rebecca sugou toda a vida da casa. Organizou tudo, vivenciou tudo, pensou em tudo, e tudo executou de forma maravilhosa e prática, de modo que não sobrou nada para a outra Sra. de Winter fazer senão se subjugar à superioridade de sua antecessora. E para sustentar as memórias — manter o passado vivo —, entra aqui o feliz achado composicional da escritora, ao introduzir a famigerada dama de companhia de Rebecca, a Sra. Sanders (Kristin Scott Thomas).
É por entre os fantasmas do passado que caminha a frágil, bondosa e às vezes sem graça Sra. de Winter.
É a Sra. Sanders quem deve manter a alta voltagem da narrativa. É ela que não deixa ninguém esquecer sua adorada Rebecca. É ela a origem da maldade, do ciúme, da perversão, cujo único objetivo é afastar a nova Sra. de Winter da casa de Manderley. E suas ações são toleradas pela complacência do Sr. de Winter, motivado pela secreta culpa que ele nutre em relação à morte da esposa. É esta fragilidade psicológica de Maxim que torna a construção da trama factível e verossimilhante. É por entre os fantasmas do passado que caminha a frágil, bondosa e às vezes sem graça Sra. de Winter.
Em suma. Pode parecer uma atitude cruel fazer comparações. E, na maioria das vezes, é. Em se tratando de pessoas, sempre será. Na arte, as comparações são inevitáveis, mas nem sempre desejáveis. Para os críticos, é compreensível, afinal, é seu ofício. Para os espectadores, é sempre uma tentação. Deste modo, diante de situações tão similares como são as destes dois filmes, infelizmente, o ato de comparar parece inevitável.
Rebecca – a mulher inesquecível, produção de 2020, corre o risco de ser esquecida.
No caso da produção atual de Rebecca – a mulher inesquecível, compará-la com o clássico pode ser um exercício útil para apreender a essência de cada obra. Ben Wheatley não é Hitchcock, nem 2020 é 1940. Hitchcock é mestre do suspense, Wheatley passa um pouco longe. Um filme é em preto e branco, limitado por esta técnica. O recente é colorido e explora esse recurso com elogiável elegância, despejando cores nos figurinos e cenários. Hitchcock explora o suspense e as tensões psicológicas, Weahtley, o romantismo, inserindo sensualidade e nudismo, impensáveis em 1940. O que nos fica claro mesmo é que a atual versão teve dificuldades em nos entregar o soberbo retrato de Rebecca. Jogou dezenas de evidências na tela, mas não conseguiu amalgamá-las na imagem da mulher inesquecível. Rebecca vem incompleta. Rebecca fica embaçada no imaginário do espectador, o que nos faz crer que a Rebecca 2020 não será tão inesquecível quanto é a outra, a clássica.
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