Roberto Gerin

Resenha Tartufo

UMA ODE À HIPOCRISIA

Tartufo, o hipócrita, tartufo, aquele que finge santidade para espalhar suas maldades, tartufo, aquele que tem a habilidade de fazer os outros pensarem que ele é exatamente aquilo que ele não é, santo! E se faz passar por santo justo para tirar proveito da bondade, do sincretismo e da ingenuidade do outro. Alto lá! Quando se fala em tirar proveito, fala-se em tirar, primeiro, a mulher do outro, depois, os seus bens! Eis, pois, Tartufo, a maravilhosa peça de teatro escrita por Molière, e levado ao palco, pela primeira vez, em Paris, no ano de 1664, sob o absolutismo monárquico de Luiz XIV, o rei Sol. Diante de uma caracterização tão precisa e tão forte da hipocrisia religiosa e moral, é quase dispensável dizer que a montagem de 1664 – particular ao rei, diga-se – causou furor nas hostes eclesiásticas e em seus respectivos devotos. O espetáculo não pôde ir a público, sob a alegação de que teatro não é lugar para pregar (ou despregar?) o evangelho. Molière tentou novamente em 1667, inclusive alterando o nome da peça, mas em vão. Só em 1669, com as benesses do rei Luiz XIV, é que o espetáculo subiu aos palcos, definitivamente, resgatando seu nome original, Tartufo.

Tartufo é um ninguém que vaga pelas ruas de Paris à procura de uma presa para as suas espertezas. E logo encontra em dona Pernela, e no seu filho, o burguês Orgonte, a oportunidade de se arrumar. E a trama ganha contornos cômico-dramáticos quando Orgonte, abduzido pela santidade de Tartufo, convida-o para vir morar em sua casa. Está armado o circo dos horrores, numa dimensão bem humana, encaixando as questões sociais e econômicas da época às relações de família, onde algumas pessoas enxergam o que querem, sem conseguir enxergar o que devem. Neste caso, enquanto a farsa não se resolve, a narrativa segue seu caminho, em ritmo de poesia e métricas, as rimas exalando humor e a hipocrisia ganhando expressões cada vez mais absurdas. E reveladoras.

O texto teatral Tartufo divide-se em quatro atos, o suficiente para Molière ir construindo o perfil tartufiniano do seu personagem. No primeiro ato, a reação da família à presença de Tartufo, capitaneada pela debochada empregada Dorina, e a tentativa, em vão, de alertar dona Pernela e Orgonte das intenções do intruso. No segundo ato, Orgonte vai adiante com sua devota cegueira, oferecendo a mão da filha, Mariana, então noiva de Valério, a seu venerado hóspede. No terceiro ato, a máscara começa a cair. As intenções de Tartufo se revelam para os que já sabiam delas, portanto, apenas vem a confirmação, acentuando, no jogo dramático, a estultícia de Orgonte, que não só resiste às revelações, como dá mais um passo, agora o fatal, que é a de entregar os seus bens ao espertalhão. Por último, o quarto ato, o desfecho, que não se revelará aqui, mas que, por uma razão que logo será explicada, merece um parágrafo único.

A censura, em quaisquer de suas formas mesquinhas, sempre existiu. Afinal, a censura é inerente ao poder. Será sempre necessário dominar o contrário. E Molière, com suas peças de costumes, aprazia-se em alfinetar, nos palcos, os traseiros das duas classes sociais que já começavam a entrar em choque àquela época, fins do século XVII. Falamos da burguesia emergente e da aristocracia decadente, pratos cheios para o arguto e perseguido Molière. E sobrava quem para proteger o dramaturgo, diretor e ator Molière? O rei, seu mecenas. Exaltar o rei é a garantia de proteção aos ataques dos ofendidos. E com o texto teatral Tartufo não foi diferente, pois o quarto ato registra muito bem esta atitude, digamos, um tanto esperta, de Molière, de bajular o rei, alçá-lo à condição de sábio mediador, mas que entendemos ser a única saída que ele tinha para continuar de pé, com seu teatro. Ao ler o quarto ato, o leitor logo perceberá as tais manobras políticas de Molière.

A arte tida como clássica perpassa pelos tempos, incólume, denunciando o presente como se a ele pertencesse. Em outras palavras, toda obra clássica tem que ser necessariamente moderna. E Tartufo, com suas artimanhas morais, com seu jogo de mentiras, com sua sede por riqueza e poder, define, em parte, o que é o homem moderno, apegado às pequenas hipocrisias como forma de alcançar seus objetivos e neles sobreviver. Como preço a pagar por tais hipocrisias, é preciso ao homem moderno se fingir de morto, ou sonso. É preciso abraçar a ingenuidade, permitir, em outras palavras, que algum Tartufo entre em sua casa. E o Tartufo, descolado na vida, escolherá sempre as famílias ingênuas. E assim é. Família ingênua, pátria ingênua!

 

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