Roberto Gerin

Resenha Tempestade de Areia

A CULTURA COMO SUTIL INSTRUMENTO DE OPRESSÃO

Às vezes é aconselhável deixarmos certos hábitos e preferências de lado e sairmos à procura de filmes fora da rota das produções norte-americanas e europeias. Olhar para outras paisagens, outras culturas, outras filmografias. TEMPESTADE DE AREIA (97’), direção e roteiro de Elite Zexer, Israel (2016), é uma ótima opção para quem quer mergulhar em outra realidade, aparentemente estranha a nós, mas que, logo vamos perceber, traz muitas semelhanças com a maneira de vida que levamos. Principalmente nos aspectos moral e social. Sob a capa da cultura e dos costumes, que são únicos para cada povo, há uma inevitável identificação entre os seres humanos que somos, independente do lugar e época em que vivemos. Pelo olhar deste belo filme, vamos aterrissar numa aldeia de beduínos, bem no epicentro de um conflito familiar. Tudo narrado pelas lentes de uma produção israelense. E o que vemos nos surpreende.

Tempestade de Areia é desses filmes a que devemos assistir de vez em quando para nos atualizarmos sobre o que anda fazendo, desde sempre, a raça humana. Vamos perceber como transitamos por códigos por nós compilados e aceitos ao longo do tempo, e que serão fontes inevitáveis de sofrimentos. É só olharmos em torno de nós, para o nosso cotidiano. Se nos pusermos a anotar uma a uma as regras morais e sociais a que estamos submetidos, com certeza vamos nos assustar com a quantidade de limites, e invariavelmente nos perguntar como é que conseguimos viver nesse emaranhado de preconceitos e proibições. Layla, a protagonista, é o exemplo da atitude trágica de quem renuncia à sua felicidade apenas para manter de pé a abalada estrutura familiar. Sua autoimolação permitirá a continuidade da tradição, e, como toda tradição, esta também faz o movimento que lhe é essencial, o de subjugar a individualidade.

Neste filme revelador, o que vemos é um drama familiar, cujos membros estão presos a códigos culturais cristalizados ao longo de séculos, que apenas poucos — pagando alto preço — se dispõem a confrontar. É o fenômeno dos comportamentos humanos sintetizados pelo que chamamos de cultura, mas que, infelizmente, em muitos casos, favorece, de um lado, os exercícios da hipocrisia, e do outro, o domínio pela opressão. Não há esperanças, cabem apenas sonhos seguidos de frustrações. Quando se pensa que se vai avançar, transgredir, há o recuo, a triste volta ao impiedoso domínio dos códigos.

O marido e pai Suliman (Hitham Omari), por direito à bigamia, casa-se com a segunda mulher. Normal, é o código. É festejado por seus pares, alguns deles também bígamos. A primeira mulher, Jalila (Ruba Blal), cuida dos preparativos do casamento. No dia seguinte, enquanto o marido se esbalda na cama nova com a nova mulher, a antiga limpa as sujeiras da festa. Lava baldes de roupa, sempre com a ajuda contrariada da filha mais velha, Layla (a excelente Lamis Ammar). Layla, aliás, está contrariada com o pai e a mãe por não permitirem que ela namore Anuar (Jalal Masrwa), rapaz de outra casta. De fato, segundo o código, não pode. Cobriria o pai Suliman de vergonha.

A partir do momento em que o marido passa a usufruir do seu direito à bigamia, a antiga relação familiar parece mudar de lugar. A primeira esposa começa a questionar os comportamentos do marido. Opa! Sim, dentro da opressão cultural cabe certa revolta. Afinal, há os sentimentos, e nós somos também feitos deles. O marido dá mais atenção à esposa mais nova. Oferece a ela casa mais bonita, geladeira mais cheia, carinhos mais demorados. Em atitude de revolta velada, a preterida primeira esposa passa a apoiar os interesses da filha em relação ao namoro proibido. Desta forma, a estabilidade cultural, e dentro dela a estabilidade familiar, começa a ser colocada em xeque.

O filme termina como começou? Não. Ele dá um terrível passo à frente. Quando parece que tudo vai se ajustar, quando a mãe toma atitudes de rebeldia em relação ao marido e, por causa disso, é devolvida (banida) por ele à casa dos pais (para vergonha destes), quando, apoiada pela mãe, a filha resolve quebrar o rígido código de castas, indo ao encontro do namorado, quando… Estas circunvoluções da trama assemelham-se àqueles jogos de desafios, onde a cada superação de obstáculo, o próximo será ainda mais difícil de ser superado, dando-nos a certeza de que estamos condenados, por antecipação, à derrota.

Em suma. Este é o sentimento que cada um de nós carrega dentro de si. Somos ludibriados por certas imposições culturais, e a moral se serve maliciosamente desta pobre cultura para nos dominar. E quando parece estarmos preparados para dar um passo à frente e nos libertarmos das amarras que nos sufocam, o que acontece? O filme dá sim um passo à frente. Infelizmente, os códigos morais, ao vencerem mais uma vez, tornam-se ainda mais resistentes e mais opressores. Fortalecem-se para continuar nos subjugando. Esse é o triste recado. Ao nos rebelarmos, nada mais fazemos do que confirmar os códigos, fortalecendo-os com nossas derrotas. Derrotados, retornamos a eles. Este é o eterno enredo de nossas pequenas e cotidianas tragédias.

 

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