Roberto Gerin

Resenha Um Sonho de Liberdade, por Roberto Gerin

A OBSESSÃO PELA LIBERDADE

O drama clássico UM SONHO DE LIBERDADE (140’), direção de Frank Darabont, EUA (1994), é baseado no romance Rita Hayworth and Shawshank Redemption, publicado em 1982 pelo escritor norte-americano Stephen King, com quem o diretor divide o eficiente roteiro. O próprio título em português traz a feliz solução que resume o ponto central do filme — a busca para lá de obsessiva pela liberdade como única forma de se redimir da injustiça de que o protagonista fora vítima ao ser acusado pelo assassinato da esposa e seu amante.

Um Sonho de Liberdade transforma-se num exercício de existência silenciosa.

O problema é que todas as evidências levaram à condenação de Andy Dufresne à prisão perpétua. E agora, diante da indiferença do sistema penitenciário sobre sua inocência, resta-lhe munir-se de paciente inteligência para lidar, sem maiores atritos, com o desumano cotidiano prisional. O que lhe interessa é tecer cuidadosamente seu longo sonho de liberdade. Nesse sentido, o filme Um Sonho de Liberdade transforma-se num exercício de existência silenciosa. O protagonista constrói em torno de si uma relação de empatia com seus companheiros raramente vista em ambientes tão hostis. Foi a tática (humana) que ele espertamente adotou para seguir adiante. Afinal, para Andy, a busca pela liberdade simboliza tão somente a busca pela verdade.

Red aposta suas fichas no arrumadinho Andy, para ele a peça humana mais frágil daquele comboio de sentenciados.

Um dos pontos felizes do roteiro é ter ele delegado ao detento Ellis Boyd “Red” Redding (Morgam Freeman) a responsabilidade de narrar o drama do jovem bancário Andy Dufresne (Tim Robbins), preso em 1946, acusado de matar, como já se disse, a esposa e seu amante. É através da voz de Red que vamos conhecendo quem é esse inquebrantável Andy Dufresne.

A narrativa começa com os detentos observando a chegada dos novos condenados, entre eles Andy. O contrabandista Red propõe apostas para ver qual dos novos detentos vai primeiro sucumbir às primeiras violências da prisão. Red evidentemente aposta suas fichas no arrumadinho Andy, para ele a peça humana mais frágil daquele comboio de sentenciados. É o momento crucial para Um Sonho de Liberdade pincelar, com sagaz sensibilidade, os sofrimentos psicológicos a que estes seres humanos são submetidos, independente do crime que trazem no currículo. O silencioso autocontrole do seu escolhido surpreende Red, levando-o a perder as apostas.

Um Sonho de Liberdade se apoia na relação entre os dois amigos como veio condutor da trama.

A partir de então, Red estabelece com Andy uma relação de respeito e admiração. A aproximação se dá primeiro pela curiosidade, depois pelas afinidades, caracterizadas pela forma como ambos enxergam a vida acontecendo dentro e fora da prisão. Dividem suas angústias, seus sonhos e suas esperanças, formando uma dupla respeitada (mas não temida) por boa parte dos presidiários. E mesmo Andy sofrendo por anos de violência sexual coletiva, ele se mantém, para espanto de Red, calmo e frio. A amizade de Red servirá para Andy como um escudo emocional necessário para atravessar incólume seus insuportáveis anos de penitenciária.

Neste sentido, estrategicamente Um Sonho de Liberdade se apoia na relação entre os dois amigos como veio condutor da trama, formatada pela versão do narrador Red. A admiração que Red nutre pela inteligência, frieza e solicitude de Andy é que dá o tom e o ritmo ao filme, conferindo ao drama uma dimensão de factível realidade. Numa disputa de inteligências, jogos de paciência e manobras financeiras, Andy vai cimentando, no esforço inabalável de uma formiga, seu sonho de liberdade.

Um Sonho de Liberdade reforça a ideia de que é possível alcançar o que parece ser inalcançável.

No entanto, o que nos é mostrado no cotidiano da prisão não traz tantas novidades, uma vez que essa temática sempre foi muito explorada pelo cinema. Para quem quiser ir um pouco além, podemos mencionar, dentre tantos clássicos, dois deles. O Expresso da Meia-noite, que conta a história de um presidiário norte-americano nas perversas prisões turcas, e Alcatraz: a fuga impossível, com Clint Eastwood, que narra a fuga de três homens do mais seguro complexo penitenciário de que se tem notícia, plantado em uma ilha em frente à São Francisco, na Califórnia.

Cabe mencionar também um dos principais romances do escritor russo Fiódor Dostoiévski, Recordação da Casa dos Mortos, em que o autor narra, com plena sensibilidade, análise de perfis psicológicos e indisfarçada crueza, os quatro anos em que ficou preso nos confins da Sibéria, condenado por suposta subversão ao regime czarista dos Romanov.

Era disso que Andy precisava: chegar ao centro do poder.

A despeito de todas as obras mencionadas terem em comum a obstinada busca pela liberdade, o filme Um Sonho de Liberdade traz um sabor diferente, todo peculiar. Afinal, ninguém passa vinte anos metodicamente cavando um túnel com uma picareta tão minúscula que cabe na palma da mão. Haja resiliência!

O outro lado oferecido pela trama é a aproximação do hábil e tarimbado Andy com a administração da penitenciária. Seus conhecimentos contábeis servirão como um salvo conduto, trazendo-lhe pequenas vantagens, muitas das quais ele as oferece aos seus amigos. Até chegar ao gabinete do religioso e corrupto diretor do presídio, Samuel Norton (Bob Gunton), e se tornar seu fiel contador. Era disso que Andy precisava: chegar ao centro do poder.

Andy se apodera aos poucos de uma rede de relações e interferências que vão possibilitar não só a sua fuga como também permitir a vingança contra seus algozes. No entanto, a sede de vingança não é o mote que alimenta a narrativa. É apenas a consequência de uma estratégia pessoal de agir, onde o que interessa, em cada movimento, é a conquista da liberdade.

Um Sonho do Liberdade nos ensina que preservar o que somos é condição sine qua non para continuarmos livres.

Em suma. Um Sonho de Liberdade se transforma num grito de sensibilidade ao humanizar homens que foram condenados a passar a vida trancafiados por um sistema presidiário implacável e corrupto. E no caso específico de Andy, por um sistema jurídico também corrupto. Os detentos são estigmatizados por seus crimes, portanto, ignorados pela sociedade, como se não merecessem tratamento digno. A desfiguração da identidade os leva muitas vezes a perderem justamente seu sentido de liberdade, não suportando serem reconduzidos a viver em sociedade. A prisão torna-se seu habitat natural.

No entanto, Andy sai incólume deste jogo perverso, o que dá ao filme seu sentido máximo. Somos seres humanos capazes de nos adaptarmos, sem, contudo, para isso, precisarmos abrir mão da nossa identidade. Preservar o que somos é condição sine qua non para continuarmos livres.

 

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